sábado, 13 de outubro de 2018

Entrevista a Assis Angelo


O BRASIL DAS ARÁBIAS


Marco Haurélio e Némer Salamún
Concedi, na última terça, uma entrevista ao jornalista Assis Angelo. O mote foi a minha recente incursão pelo Oriente Médio, no emirado de Sharjah, além das conexões culturais do Brasil com o mundo árabe. 

Marco Haurélio é um baiano nascido na roça. No sudoeste da Bahia. Ele plantou e, agora, está colhendo os frutos da cultura, da vida e da história. Fugindo à regra nordestina, das quebradas lá de longe, ele aprendeu o beabá desenvolvendo o intelecto. Intelecto é aquela coisinha, massa cinzenta, que carregamos no cérebro. E os seus pais, Valdi e Maria, fizeram tudo para lhe dar um canudo uma beca. E, assim, Marco Haurélio Fernandes Farias entrou na universidade m Caetité (BA) e, quatro depois, licenciado em Letras, fez sorrir seus pais. E o mundo abriu-se para Marco. Abriu-se, ele continua lutando apaixonadamente pela história do Brasil, pela cultura popular, pelas coisas da gente. Eu conheci muitas pessoas importantes da área da cultura popular como Luís da Câmara Cascudo ou Mário Souto Maior. Eu tenho certeza de que Cascudo e Souto Maior orgulhar-se-iam do Marco como eu.

Assis – Marco, você andou pelo mundo todo, ou quase. Você esteve ausente? Tá bom, eu sei onde você esteve, mas os leitores do blog não sabem. Diga. Onde você esteve ultimamente.

Marco – Estive em Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos, a convite do Institute for Heritage, ou melhor, do presidente desta importante instituição do Oriente Médio, o Dr. Abdulaziz Al-Mussalam.

A – E você foi o que lá, nesse lugar tão distante?

M – Fui contar histórias de nossa tradição oral num evento que acontece por lá há 18 anos, o International Narrator Forum, que reúne narradores e pesquisadores de várias partes do mundo.

A – O que se fez mais presente lá, a cultura popular ou a erudita? Ou as duas se juntaram?

– As duas estão tão mescladas que não dá para saber onde termina uma e começa a outra. Vi grupos de música tradicional, ouvi a voz do muezzin, convocando os fiéis para a mesquita, e lembrei do nosso vaqueiro na solidão dos ermos nordestinos. Li sobre lendas e mal-assombros muito próximos dos nossos mitos, como o camelo sem cabeça, em tudo semelhante à nossa mula-sem-cabeça. Vi, no Museu da Civilização Árabe, artigos em couro que lembravam a civilização do couro do Nordeste, evocada por Capistrano de Abreu. Confesso que me senti em casa.

A – Ao pisar o solo árabe, você lembrou-se de quê? Das Mil e Uma Noites?

M – As Mil e Uma Noites são a nossa principal referência cultural em termos de literatura, abrangendo a vastidão do mundo islâmico, que vai da Índia ao Marrocos. Lá, a arquitetura, os trajes, as saudações, a devoção remetiam aos velhos contos narrados por Xerazade, mas vai muito além disso. Há todo um caudal de tradições que dialogam com os nossos costumes, com o Brasil que, irresponsavelmente, estamos deixando morrer.

A – O real e o imaginário se confundem mais em Sharjah do que em outro lugar que você conhece?

– O trabalho de recolha e catalogação feito pelo Dr. Abdulaziz Al-Mussalam, entre os povos do deserto, revelou um mundo muito rico, em que as superstições, os seres fantásticos impregnam a vida cotidiana. Na capital, isso não está tão presente, mas, uma coisa é certa: Sharjah é um exemplo de país em que a modernidade e a tradição convivem em perfeita harmonia.

A – Estamos falando de cultura popular. Provocado, o que você viu no mundo árabe semelhante ao local em que você nasceu?

M – Muita coisa em comum. O fato de as mulheres usarem lenço no sertão é uma herança do mundo árabe. O medo de criaturas que habitam nas profundezas da caatinga, assombrando árvores como juazeiro, umbuzeiro e gameleira é parecida com uma lenda de lá, de uma tamareira assombrada. Lá, tem um camelo que leva embora as pessoas ruins num saco que traz entre os dentes, assim como nós temos o velho do saco ou velho do surrão. E, na música, embora não saiba nada de árabe, conversando com pessoas de lá, descobri que os temas eram quase sempre amorosos, líricos, e me lembrei de Teófilo Braga, etnógrafo português, que estudou as cantigas de amor portuguesas, as aravias, assim chamadas, pois tiveram origem entre os povos do deserto que conquistaram e deitaram raízes na Península Ibérica.

A – A distância é um ponto de vista. Você encontrou na Arábia o Brasil, Marco?

M – Claro. O Brasil recebeu, dos povos de cultura islâmica, além de várias palavras incorporadas para sempre ao nosso vocabulário, crenças arraigadas na alma de nosso povo. O saci preso na garrafa com o fito de propiciar riqueza deriva do djin do folclore árabe, o gênio das lâmpada dos contos das Mil e Uma Noites. Outra ligação que merece ser ressaltada tem a ver com a culinária, principalmente a nordestina, carregada de tempero, saborosa como mais não pode ser. A história explica isso, pois, além de Portugal ter sido dominado pelos mouros, tempos depois, no período de expansão marítima, os nossos patrícios foram os primeiros povos do Ocidente a conquistar a região, usada como entreposto em suas viagens à Índia.

A – O que te fez aceitar um convite para ir para um lugar tão distante?

M – Na Bienal do Livro de São Paulo, por indicação da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, participei de uma mesa redonda sobre contos folclóricos com o Dr. Abdulaziz, representante de Sharjah, país homenageado no evento. Dois dias depois, numa cerimônia reservada, recebi, das mãos do Dr. Addulaziz, uma medalha de honra por meu trabalho de pesquisa e salvaguarda da tradição oral brasileira. O convite foi feito nesse mesmo dia, 6 de agosto, uma segunda feira.

A – Marco, fala-se muito da mulher árabe. O que você viu por lá?
M – Lá, as mulheres ocupam cargos importantes, dirigindo entidades, na coordenação de importantes eventos. Lá estive com minha companheira Lucélia, também convidada pela organização do Forum, para ministrar uma oficina de xilogravura para crianças. Lá esteve ainda um casal de amigos, Fabio Lisboa e Bianca Tozato, também representando o Brasil. Sentimo-nos muito à vontade, como eu disse antes, estávamos em casa.

– Então, você se sentiu em casa. Temos muito a ver com o mundo árabe. E a Donzela Teodora, você a encontrou?

M – A Donzela Teodora, Simbad, Ali Babá estão presentes na fala cantada de nossos irmãos. A Donzela Teodora é a Douta Simpatia das Mil e Uma Noites, a mulher sábia que foi imortalizada em nosso cordel por Leandro Gomes de Barros e na voz de Elomar. Afinal de contas, o nosso Brasil, repositório de culturas, é também filho das Arábias. Salam Aleikum!
 
Oficina de xilogravura para crianças com Lucélia Borges


– Dá pra resumir tudo isso numa estrofe em decassílabo?

M – O Brasil, um país continental,
Traz na veia o sangue de mil povos,
Dos nativos e de outros bem mais novos,
Integrando o concerto universal.
Das Arábias herdou um cabedal,
Reunido ao cantar do lusitano,
Índio negro, francês, bantu, cigano,
Que atravessam minh’alma como açoites,
Como os contos das Mil e Uma Noites,
Que eu celebro em martelo alagoano.

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