sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Tristão e Isolda ganha versão em cordel



Capa de Luciano Tasso. 

Tristão e Isolda
é uma história que desafia o tempo e as convenções sociais. Nela, Tristão, o cavaleiro perfeito, poeta e herói civilizador, defensor da honra e da liberdade, é envolvido na teia de um amor fatal, do qual não pode ou não quer se livrar. Isolda é a imagem da mulher ao mesmo tempo bela e misteriosa, herdeira dos segredos das fadas da mitologia da Irlanda, senhora dos filtros mágicos que podem trazer a cura ou a morte. Corrente nas águas da tradição do mundo celta, a lenda dos desventurados amantes foi recontada nos séculos XII e XIII, principalmente, por poetas e prosadores, alcançando grande sucesso. Depois do relativo esquecimento nos anos que se seguiram à Renascença, o mito foi relido por Richard Wagner na clássica ópera de 1859.
Esta versão em cordel, gênero poético que, em sua feição mais genuína, se vincula à canção de gesta e à epopeia, tem o mérito de devolver a saga ao gênero no qual debutou: a poesia. 

Tristão e Isolda, a encarnação do amor moderno

Maior mito concebido pelo Ocidente, junto com o Santo Graal, segundo o historiador Jean-Marie Fritz, Tristão e Isolda conta, basicamente, uma história de amor, mas não qualquer história. A impossibilidade de um final redentor não impede a realização do amor, em que pesem as armadilhas preparadas pelos adversários, o maior de todos o próprio destino. O mito parece provir da cultura céltica, continental (da Bretanha Armórica, norte da França) e insular (Grã-Bretanha e Irlanda). O contexto em que o mito se cristaliza, no entanto, é a França na época em que estava em voga o amor cortês, ao menos na literatura, e em que a sociedade altamente estratificada assistia a profundas transformações. Sua difusão pela Europa deu-se, inicialmente, por meio de dois romances em versos: um de autoria do clérigo anglo-normando Thomas, entre 1170 e 1173, e outra de Béroul, poeta normando, que forneceria a versão mais difundida da qual resta um fragmento de 4.485 versos. Vieram em seguida outros textos: Loucura de Tristão (há duas versões, uma de Berna, outra de Oxford) e o Lai da Madressilva, da princesa Marie de France, que fixou a fórmula do casal inseparável mesmo após sua trágica morte de cujos túmulos brotarão uma madressilva e uma aveleira: “Nem vós sem mim, nem eu sem vós”.

O mito passará por poucas transformações, talvez a maior delas seja um romance prosificado, composto por volta de 1230, em que Tristão, talvez por influência do Lancelote em prosa, se torna um cavaleiro da Távola Redonda. A história fazia sucesso nas cortes, até mesmo na fria Noruega, onde o célebre rei Haakon IV encomendou, em 1226, uma versão a Frei Robert. Outro romance, desta vez composto na Alemanha, aparece na primeira década do século XIII, por Godofredo de Estrasburgo, que, séculos depois, servirá de base à célebre ópera de Wagner. A Alemanha conheceu mais duas versões, de Ulrich von Thürheim e Heinrich von Freiberg, a Inglaterra outra, Sir Tristrem (cerca de 1300), além de um romance em prosa italiano do final do século XIII, conhecido como Tristano Ricardino. Em meados do século XV, o célebre Sir Thomas Mallory, autor de A Morte de Artur, escreve Tristam de Lyone [Tristão de Leonis], com grande sucesso.

A história, a partir das primeiras versões, obedece a um esquema básico: o herói nasce em meio à tragédia (razão de seu nome associado ao radical latino tristis: triste) e cresce desconhecendo a sua identidade (como Perseu, o Rei Artur e, modernamente, Luke Skyawalker da cinessérie Star Wars). Sabedor de sua origem, destrona o usurpador, liberta o reino de seu tio, o rei Marc, de um injusto tributo, derrotando o Morholt da Irlanda (assim como Teseu derrotou o Minotauro, livrando Atenas de um fardo semelhante), mas fica entre a vida e a morte. É nesse ponto que o mito aponta para a sua principal matriz, a mitologia celta irlandesa, na figura de Isolda, princesa e mortal, mas detentora, assim como sua mãe, dos segredos da vida, do amor e da morte. Tristão é curado por Isolda e, em outra ocasião, quando chefia uma embaixada em nome de seu tio, livra a Irlanda de outro tributo, derrotando um dragão e conquistando a mão da princesa para Marc. Este motivo, que o aproxima uma vez mais do mito grego de Perseu e Andrômeda e da lenda de São Jorge, justifica a reivindicação do herói diante de um rei rival do seu povo. A lealdade vassálica, própria da Europa feudal, explica em parte a voluntariedade de Tristão e seu dilema posterior à conquista da mão de Isolda, dividido que fica entre a lealdade ao rei, que também é seu tio, e o amor puro que devota à sua amada.  

A poção do amor, oferecida pela mãe da heroína, geralmente identificada com o mesmo nome desta, como presente de casamento a ser oferecido ao rei Marc, e bebida acidentalmente por Tristão e Isolda durante a viagem que os levará a Cornualha, escancara o amor entre ambos e precipita a tragédia. Tudo o que vem a seguir – as intrigas dos vassalos, instigadas principalmente por Audret, também sobrinho de Marc, os truques de Isolda, com a ajuda da fiel serva Brangiene, a fuga para a floresta de Morois, o exílio do herói – confere à história uma dimensão humana, com alguns alívios cômicos, que alternam heroísmo e sagacidade em doses idênticas. O lirismo dos episódios da floresta de Morois dialogam com outra lenda céltica, a de Diarmuid e Gráinne, esposa do rei Fionn mac Cumhaill, herói do ciclo feniano da mitologia irlandesa, perseguidor implacável do jovem e infeliz casal.

Trecho inicial do romance:

Meu pensamento viaja
Para outro tempo e lugar,
Enfrenta ventos vorazes,
Atravessa o velho mar
E numa fonte encantada
Vai a sede saciar.

Depois de dar muitas voltas,
Detém-se na Cornualha,
País onde Marc, o rei,
Encara feroz batalha,
Pois, se perder, trocará
O cetro pela mortalha.

Era uma guerra cruenta,
Porém Marc, sem temor,
Por Rivaleno ajudado,
Saíra-se vencedor,
E ofereceu ao amigo
A sua irmã Brancaflor.

Rivaleno governava
O reino de Leonis.
Ele amava Brancaflor;
Por isso ficou feliz
E com ela foi morar
No seu bonito país.

Brancaflor e Rivaleno
Vivem felizes um ano.
Quando a rainha engravida,
Vem o triste desengano:
O reino é ameaçado
Pelo pérfido Morgano.

Esse sujeito um exército
De mercenários formou,
Mas, fingindo querer paz,
Um banquete preparou,
Chamou o rei, ele foi,
E lá o bruto o matou.

Brancaflor, com a notícia,
Quis chorar, mas não podia.
O coração lhe apertava,
O corpo todo tremia.
Em gravidez avançada,
A pobre quase morria.

Quatro dias depois disso,
A rainha recebeu
O seu filhinho nos braços,
O que muito a enterneceu,
Porém a dor que sentia
Quase nada arrefeceu.

Dizia: – Filho querido,
Corda do meu coração,
Já que nasceste em tristeza,
Desde a sua conceição,
Tu, meu menino tão belo,
Serás chamado Tristão.

Atualização do blogue: Abaixo, fotos do lançamento, ocorrido da Livraria PanaPaná, no dia 10 de novembro de 2018.










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