sábado, 23 de maio de 2020

SERTÃO FANTÁSTICO

Foto: Glissia Marla (terreiro da casa de Tia Lili, na Ponta da Serra).

A casa em que nasci fica à beira da mata que margeia a Serra Geral. Daí que o vento que descia da serra, por vezes, parecia o grito agônico das almas condenadas. Em noites de tempestade, então, era rezar pra Santa Bárbara e esperar que os raios caíssem bem longe. Mas eles, teimosamente, pipocavam em vários pontos do quintal, trazendo um brilho momentâneo, intenso. Fantasmagórico.
Lembro-me de uma dessas chuvas, em que o vento gemia ameaçador no nosso telhado. O ouricuri, no terreiro, balançava tanto que parecia um cavaleiro que, com muito esforço, se mantinha sobre a montaria. Portas e janelas bem fechadas e espelhos cobertos, como reza a tradição. Foi quando minha mãe, retornando da cozinha, depois de dizer algumas palavras incompreensíveis a mim e aos meus irmãos, atirou um punhado de farinha pela janela. E o vento foi diminuindo o seu ímpeto, até ser reduzido a um resfolego e cessar de vez. A chuva, felizmente, continuou por toda a noite, molhando a terra que, há meses, esperava por ela.

As cinzas da palha do Domingo de Ramos têm a mesma função "mágica".

O que parou o vento naquela noite? Não sei. O que sei é que, há milhares de anos, homens e mulheres barganham com os deuses (e o Vento é um deus caprichoso) ou fazem sacrifícios votivos para aplacar-lhes a fúria. O gesto de minha mãe foi funcional, mecânico, como o do viandante que deixa cair uma moeda sobre a estrada por onde passará, em troca de proteção contra os que respiram e também contra as “plataformas”. Ou o do ribeirinho, que compra o obséquio do Compadre d’Água, duende do rio São Francisco, com um pedaço de fumo, para que este ajude ou, no mínimo, não atrapalhe a sua pescaria.

No sertão, portanto, não se pode falar em sobrenatural. Os domínios dos vivos são os mesmos das visagens. Duvida? Passe embaixo duma gameleira numa noite de sexta-feira e depois me conte o que viu...



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