quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Cordéis atemporais: História da Donzela Teodora

História da Donzela Teodora
Acervo: NUPPO (Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular)

A primeira versão em cordel desse clássico é de Leandro Gomes de Barros, e foi escrita, possivelmente, na primeira década do século XX. A história tem 142 estrofes em sextilhas, com esquema de rimas xaxaxa. Narra a disputa de uma donzela, de origem espanhola, com três sábios da corte do rei Almançor, da Tunísia. O autor, conhecedor de seu público e ciente da popularidade do romance original, já na primeira estrofe, refere-se à fonte onde seu estro foi beber:

Eis a real descrição
Da história da donzela
Dos sábios que ela venceu
E a aposta ganha por ela
Tirado tudo direito
Da história grande dela. 

As perguntas e respostas são feitas por três sábios, em inquéritos distintos, nos quais, um a um são derrotados pela Donzela:

— Donzela, o que é vida?
Disse ela: — Um mar de torpeza,
O que pode assemelhar-se
À vela que está acesa,
Às vezes está tão formosa
E se apaga de surpresa. 

— Donzela, por quantas formas
Mente a pessoa afinal?
Respondeu: — Mente por três,
Tendo como essencial
Exaltar a quem quer bem
E pôr taxa em quem quer mal.

A redação mais antiga da História da Donzela Teodora é a espanhola, de Toledo, publicada em 1498. A literatura árabe traz exemplos abundantes do motivo da inteligência posta à prova, enredo básico de muitos contos populares. La Docta Simpatia é a variante do livro das Mil e uma noites, publicado em Paris entre 1704 e 1717, mais de duzentos anos depois da primeira edição do romance espanhol.

Santa Catarina de Alexandria, possível matriz da História da Donzela.


A lenda piedosa de Santa Catarina de Alexandria, martirizada no século IV, sempre foi apontada como uma das prováveis fontes da
História. Donzela como Teodora, Catarina derrotou cinquenta sábios a serviço do imperador Maximino, sendo estes, ao fim da disputa, conforme relata Jacopo da Varazze, na Legenda áurea, convertidos ao cristianismo e igualmente martirizados. Câmara Cascudo, em Cinco livros do povo, aponta, no entanto, tradições mais antigas, já que os duelos em torno da sabedoria, cujo prêmio era a vida, figuram em muitos contos de matriz popular do Oriente Médio. O nome Catarina de Alexandria, explica Cascudo, é adotado após a conversão ao cristianismo, pois antes ela se chamava Doroteia. Ambos os nomes, Teodora e Doroteia, significam, traduzidos do grego, “dádiva de Deus”. Teodora, assim, é o modelo das virtudes cristãs e, com o advento do islamismo, passa a simbolizar, também, a donzela cujo equilíbrio entre o saber livresco e a astúcia representa um alto panegírico da figura feminina em tempos de extremada misoginia.

Ao verter para sextilhas a história milenar, Leandro Gomes de Barros ajuda a popularizar entre leitores e ouvintes uma narrativa saborosa, com rara habilidade, adaptando-a para nosso contexto sociocultural, sem prejuízo de sua ancestral sabedoria. Hoje em domínio público, a obra é publicada pelas duas principais editoras tradicionais do cordel, Tupynanquim e Luzeiro, e ainda é um dos títulos mais procurados. Sobre essa permanência opina Arlene Holanda:

"A espetacular difusão alcançada pela História da Donzela Teodora e por outras obras do gênero no Brasil nos convida a refletir sobre temporalidade. Após terem saído de cena na Europa há mais de cem anos, em pleno século das luzes e depois concomitantemente ao modernismo, essas historietas de temáticas medievais eram a leitura predileta de uma fatia significativa da população brasileira".

(Arlene HOLANDA, A Fonte da Donzela: cordel de repertório medieval como fonte-documento para a pesquisa e ensino de História, p. 50, monografia.)

Na literatura de cordel, temos outra personagem que, envolvida numa narrativa novelesca, traz elementos construídos a partir do arquétipo da donzela sábia. Trata-se de Helena, a virgem dos sonhos, protagonista de um drama de autoria de Manoel Pereira Sobrinho. Criada por uma duquesa, Helena é educada pelos grandes mestres de seu tempo, e, nas palavras do autor:

Química e astronomia 
Fazia toda parcela.
Vencia qualquer um sábio
Essa mimosa donzela.
Nem a Donzela Teodora
Sabia a metade dela.

Manoel Pereira Sobrinho é autor, ainda, de uma continuação do folheto de Leandro, A filha da Donzela Teodora.

Para saber mais: Marco Haurélio. Literatura de Cordel: do sertão à sala de aula. São Paulo: Paulus, 2013. 

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