Ana Lúcia
Merege é uma mulher que corre com os lobos. Por sua prosa ecoam narrativas
fantásticas da Antiguidade e do Medievo relidas, refundidas, renascendo, jovens
e vigorosas como se saltassem do caldeirão fervilhante de Medeia. Ana passeia
por vários mundos e épocas, temperando sua fantasia sofisticada com pitadas de sword
and sorcery, afinal, a literatura da Estante Mágica não aceita amarras nem
compartimentos. O primeiro livro seu a que tive acesso era um ensaio sobre os
contos de fadas, lançado de forma independente e com tiragem limitada, naquele
momento, a uns poucos curiosos. Na época, eu coordenava uma coleção pela
Editora Claridade, selo da Nova Alexandria, chamada Saber de Tudo. Não pensei
duas vezes e entrei em contato com a Ana, convidando-a para fazer parte da
coleção, que relançaria o seu livro, o que, efetivamente, aconteceu na
primavera de 2010. Escolhi para figurar na capa uma pintura realista de Albert
Anker que trazia Chapeuzinho Vermelho como uma menina de aldeia do século XIX.
Fora-me sugerida a repisadíssima gravura de Gustave Doré, da versão de Charles
Perrault, utilizada ad nauseam, mas não arredei pé de minha escolha, e,
até hoje, é esta imagem que adorna a capa do livro que, a cada ano, vem sendo acarinhado
por muitos leitores.
Qual não
foi, portanto, minha surpresa ao me deparar com a sua novela fantástica O
caçador, quase em seguida à edição de Os contos de fadas, e perceber
tratar-se de um livro que em quase nada se filiava ao anterior, embora os
vários personagens de um frequentassem as páginas do outro. Claro, são gêneros
distintos, enfocando universos que se entrecruzam, mas, a ficção permite
liberdades das quais os estudos sistemáticos têm de fugir como a Chapeuzinho do
Lobo. A maior surpresa ficou por conta do improvável protagonista. Personagem
periférico em Branca de Neve, quase um braço da rainha vilã, o Caçador aparece
com mais destaquem Chapeuzinho Vermelho, cumprindo o papel de herói salvador.
Sua rivalidade com o lobo, velha como a própria atividade de onde tira o
sustento, é realçada na versão dos Irmãos Grimm, mais completa e interessante
que a anterior, e certamente modificada, de Charles Perrault. O predador é
chamado de “velho pagão”, o que não nos causa qualquer surpresa, dados os
antecedentes míticos, especialmente entre os povos germânicos e escandinavos,
nos quais o Lobo está diretamente associado às forças do Caos (encarnadas em
Fenrir) e ao fim do ciclo dos deuses e heróis dos povos do setentrião. Lobo e
Caçador são, portanto, na versão canônica mais celebrada do conto-tipo Chapeuzinho
Vermelho, inimigos irreconciliáveis. Mas será que sempre foi assim? Afinal,
os mais antigos mitos, como o Gilgamesh sumério, apontam para uma ligação
anímica entre caçador e caça, no caso entre o herói e o leão por ele superado e
a ele assimilado.
Variações
do conto da menina do chapeuzinho vermelho
No índice
ATU, que reúne boa parte dos contos recolhidos e divulgados em coletâneas pelo
mundo, Chapeuzinho Vermelho (Capuchinho Vermelho em Portugal)
é o tipo 333 [Little Red Riding Hood] e, segundo Paulo Correia e Isabel
Cardigos, divide-se em três partes:
I. (a) Uma menina é mandada
pela mãe levar um bolo, etc. à avó, que vive do outro lado da floresta. (b) A
mãe avisa-a em relação aos lobos.
II. A menina encontra o lobo,
(a) que dela aprende como entrar em casa da avó. (b) O lobo chega primeiro,
(b1) come a avó, (b2 ) deita-se na cama dela e espera pela menina; (c) a menina
julga que o lobo é a avó; (c1) diálogo formulístico entre o lobo e a menina,
antes de (c2) o lobo a comer.
III. A menina (a) é salva (a1)
juntamente com a avó, (b) por um caçador / (b2) lenhador; (c) enchem a barriga
do lobo com pedras, o lobo tem sede cai no rio e afoga-se.
Sandra L.
Beckett, no verbete Chapeuzinho Vermelho, escrito para a monumental Greenwood Encyclopedia of Folktales and
Fairy Tales (págs. 583-588), cita o “Conte de la
mere-grand
(‘O conto da avó’), coletado em Nièvre por volta de 1885 e publicado pelo
folclorista francês Paul Delarue em 1951”, em versão que, por seu conteúdo mais
elaborado e livre de podas moralistas, certamente corria na tradição oral muito
antes do registro de Perrault:
Neste conto popular, uma menina camponesa é enviada para a avó com um pedaço de pão quente e uma garrafa de leite. Em uma bifurcação no caminho, ela conhece um bzou, ou lobisomem, que, depois de saber para onde está indo, pergunta se está seguindo o caminho das agulhas ou o caminho dos alfinetes. Nesta versão, a garota escolhe agulhas, mas em alguns contos ela prefere alfinetes. Enquanto alfinetes parecem ser um símbolo da maioridade, agulhas parecem significar a sexualidade de uma mulher mais velha. O lobisomem segue o outro caminho e chega primeiro à casa da avó, onde mata a velha e coloca um pouco de sua carne na despensa e um pouco de seu sangue em uma garrafa. Quando a garota chega, o lobisomem a convida a comer um pouco de carne e a beber vinho. Durante essa refeição canibal, a menina é avisada por um ou mais animais, nesta versão por um gato, de que está comendo a carne e bebendo o sangue de sua avó. A refeição ritual parece simbolizar uma incorporação física da velha senhora, que é substituída pela geração mais jovem. Quando o lobisomem convida a garotinha a se despir e a se juntar a ele na cama, segue-se uma longa “provocação”. Ao tirar as roupas, peça por peça, ela pergunta ao lobisomem o que fazer com seu avental, corpete, saia, anágua e meias. Ela é instruída a jogar cada item no fogo, pois não precisará mais dele. O diálogo dramático sobre as características físicas do lobisomem é mais longo e inclui seu corpo peludo.
Nesta
versão, não há um salvador e a heroína escapa valendo-se de sua astúcia. A
pretexto de aliviar-se, vai até o quintal com um fio de lã amarrado ao pé.
Livra-se do fio, amarrando-o a uma ameixeira, e, quando o lobo descobre o
logro, já era muito tarde.
Há
variantes em que, em lugar do lobo, aparece uma ogra, que substitui a avó,
devorada pouco antes da chegada da menina. Um clássico exemplo é A falsa avó,
conto reelaborado por Italo Calvino, no qual a casa da avó fica do outro lado
do rio Jordão e possui uma fechadura à guisa de boca, como a porta da isbá da
Baba-Yaga eslava. A jovem consegue atravessar o rio atirando-lhe roscas e
atravessa a porta gradeada, servindo-lhe pão com óleo, untando-lhe as
dobradiças enferrujadas. A heroína, esfaimada, escapa por pouco de deglutir o
que restara da pobre velha: os dentes e as orelhas, que a usurpadora assegurara
serem feijões e fritadas. Depois do diálogo formulístico, e involuntariamente
engraçado, girando em torno do excesso de pelos da “avó”, a menina descobre a
verdade ao deparar-se com o rabo da ogra (e, aqui, não nos é difícil
conjecturar que se trata de mais um disfarce do lobo). Pretextando, também,
fazer as necessidades, a menina escapa, amarrando a corda que lhe prendia a
cintura a uma cabra. Repetindo o motivo da fuga mágica, a porta gradeada
facilita-lhe a passagem. Do mesmo jeito o rio Jordão, que acaba por afogar a
velha, conforme o motivo D672: fuga de obstáculo (o rio separa o
fugitivo de seu perseguidor) do conto egípcio dos Dois Irmãos, inspiração também para o episódio
narrado em Êxodo 14:21-23 (a passagem do Mar Vermelho). Esta velha ogra se
assemelha muito à Baba-Yaga em seu aspecto maléfico, incluindo a casa-monstro,
que vem a ser justamente o oposto do que se nos apresenta à primeira vista. É, na verdade, a casa da iniciação, espaço delimitador de dois mundos (o dos
vivos e o dos mortos) onde se dá a morte e o renascimento da heroína. É o
oposto da vila onde a menina reside, em cujos arredores, acreditamos,
cultiva-se o pão e a uva para o fabrico do pão (ou bolo) e do vinho, que a
menina trará para a “avó”, ou seja, sua ancestral mítica, que mora na floresta.
A localização da menina e da velha apontam para dois estágios sociais
distintos, um ligado às práticas e aos ritos agropastoris (resumidos na
oferenda do pão e do vinho eucarísticos, presentes nos mistérios de Elêusis), e
outro muito mais antigo, relacionado à velha deusa da Morte, senhora da floresta,
“o reino dos mortos”, para os quais a heroína, se quiser renascer, terá de
fazer determinados sacrifícios: untar a fechadura ou as dobradiças com óleo é
uma forma de libação, uma garantia de que a heroína retornará ao mundo dos
vivos. Este é o contexto histórico e ritualístico do conto da menina do
Chapeuzinho Vermelho.
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