O convite para escrever uma história sobre Lampião veio da escritora Penélope Martins, que fora sondada pela editora Ciranda Cultural. Para Penélope, eu era a pessoa ideal, embora, apesar de haver editado um livro sobre Lampião, escrito pelo saudoso historiador Antonio Amaury, em colaboração com seu filho Carlos Elydio, eu nunca tenha me debruçado sobre a história do personagem. Como autor, ressalve-se, já que sempre busquei conhecer, na medida do possível, a vasta bibliografia sobre o famoso facínora. Verdade seja dita: quanto tinha por volta de nove anos, escrevi um cordel narrando as façanhas de Lampião e Maria Bonita, a partir de relatos anedóticos ou lendários. O caderno, com o original, está, infelizmente, perdido para sempre.
Por tudo isso, ao responder a Penélope, que atuava como interlocutora da editora Janice Florido, eu disse que aceitava desde que ela assinasse comigo o trabalho. Não seria um cordel, mas um romance biográfico, então, a devolução do convite fazia todo o sentido. "Mas eu conheço pouco sobre a vida de Lampião" foi a sua resposta. Eu redargui que isso não seria problema e indiquei-lhe uma bibliografia que, se não era volumosa, continha o essencial para a viagem que faríamos. E o livro que, desde o início se chamou O sonho de Lampião, acaba de nascer. Com o logo da Principis, selo ligado à Ciranda. E nasceu mais formoso do que imaginávamos, graças às delicadas e sugestivas xilogravuras de Lucélia Borges.
Cada capítulo é aberto por sextilhas compostas ao gosto popular, emulando a epopeia do cangaço com seus cantos de amor e de guerra.
Da história propriamente dita muitos sabem o começo e o final. Mas resolvemos narrá-la de outra forma, fazendo de Lampião um contador de histórias, como Ulisses, desfiando seu rosário para o futuro sogro Zé de Felipe ou para o fotógrafo e dublê de cineasta, o sírio-libanês Benjamin Abrahão.
Abaixo, um trecho do posfácio, escrito à guisa de ensaio, mostrando a presença de Lampião na literatura de cordel, no cinema e na música popular.
Conversa de cangaceiras Xilogravura de Lucélia Borges |
"Quando iniciamos a pesquisa que
redundaria neste livro, sabíamos do tamanho do desafio e das dificuldades que
nos esperavam. Afinal de contas, escrever sobre Lampião significa revisitar não
apenas a sua história, mas de muitos outras personagens, unidos por uma teia de
tragédias urdidas em tramas violentas encenadas no cenário inóspito do sertão
nordestino. A mais importante, por razões óbvias, é Maria Gomes de Oliveira, a
Maria de Déa, que a posteridade rebatizaria como Maria Bonita. E foi a partir
dela, ou melhor, de seu núcleo familiar, apresentando o cenário da fazenda
Malhada da Caiçara no sertão da Bahia, que resolvemos começar nossa jornada.
Trata-se, afinal, não de um retrato fiel, mas de uma reinterpretação, com
matizes ficcionais, da trajetória de Virgulino Ferreira da Silva, o temível
Lampião, que o poeta cordelista José Pacheco da Rocha, exagerando, mas não
mentindo, dizia ser “assombro do mundo inteiro”. Esses matizes podem ser
percebidos principalmente nos diálogos, culminando com o tema do título, o
sonho do cangaceiro, que apresenta uma encruzilhada narrativa, tentando
imaginar o que seria a vida de Lampião e, consequentemente, a de Maria de Déa,
se ele não tivesse sido acusado e perseguido por José de Saturnino, entrando
para o cangaço e arrastando consigo parte de sua família.
Maria de Déa Xilogravura de Lucélia Borges |
A ideia, quase uma fanfic, discute o
fatalismo vivo nas crenças populares, reforçado nos discursos de cangaceiros e
volantes, que, por vezes, serve para justificar as mazelas sociais e as seculares
injustiças. Algumas perguntas não precisam ser respondidas, mas devem ser marteladas,
pois, se não levam a um consenso, ajudam a enxergar melhor uma história que passa
longe de ser unidimensional. “Lampião, escreve Eric Hobsbawn, foi e ainda é um
herói para o seu povo, mas um herói ambíguo”.
Mais que ambíguo, contraditório, daí as muitas interpretações conflitantes, versões
desencontradas e perfis que ora focalizam o homem, ora o mito.
Corisco, Dadá e Zé Rufino Xilogravura de Lucélia Borges |
O cangaço, sabemos, não teve início
com Lampião, e a nossa história mostra, inclusive, que seu ingresso ocorreu,
depois de algumas refregas com José de Saturnino, com a sua acolhida pelo bando
de Sinhô Pereira. O Nordeste ainda não havia se esquecido de Antônio Silvino,
alcunha de Manuel Batista de Moraes, cangaceiro nascido na Serra da Colônia,
Pernambuco, mitificado em romances versados pelos poetas Francisco das Chagas
Batista e Leandro Gomes de Barros. Silvino, depois do assassinato de seu pai,
Pedro Batista de Morais, e da apropriação de terras de sua família, pela
companhia inglesa Great Western, para construção de uma estrada de ferro, depois
de liderar por dezoito anos um bando armado, acabou sendo preso em 1916;
permaneceu na casa de detenção do Recife até 1937, quando foi indultado pelo
presidente Getúlio Vargas. Antes de
Antônio Silvino, a história registra os nomes de Adolfo Meia-Noite, Rio Preto,
Jesuíno Brilhante e Lucas de Feira, entre outros."
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