quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Folclore e identidade

Folclore não sai de moda.
É catira, cururu,
É frevo, samba-de-roda,
Baião e maracatu.
São noites mal-assombradas,
São aboios e toadas,
É lamparina e pilão.
É visagem e mau agouro,
É gibão, chapéu de couro
E debulha de feijão.

Moreira de Acopiara, cordelista cearense



A palavra folclore (em inglês folk-lore) foi empregada pela primeira vez em 22 de agosto de 1846. O arqueólogo inglês Willians Johns Thoms, em artigo endereçado à revista The Atheneum, assinado sob o pseudônimo Ambrose Merton, foi o pioneiro. O termo abrangia o que Thoms entendia por “antiguidades populares”: contos, lendas, provérbios, mitos, romances, crenças, rifões superstições etc. Nesse artigo, nota-se a preocupação com o desaparecimento das tradições populares face à modernização dos costumes. A mesma apreensão já havia levado dois filólogos alemães, os irmãos Jakob e Wilhelm Grimm, a coletarem histórias e lendas do povo de seu país, reunidas posteriormente no Kinder- und Hausmärchen (Contos da criança e do lar, 1812), a mais famosa coletânea de contos populares já feita.

No Brasil, a partir dos pioneiros Celso de Magalhães (1849-1879), Couto de Magalhães (1836-1898) e Silvio Romero (1851-1914)), pesquisadores das mais diversas áreas vêm dedicando tempo e envidando esforços na tentativa de entender as manifestações da cultura espontânea. Com Cantos populares do Brasil e Contos populares do Brasil, o sergipano Silvio Romero deu o impulso necessário à pesquisa do folclore, embora seu trabalho se detivesse mais na recolha de modalidades da literatura oral do que no estudo do material. A publicação do livro O folclore, por João Ribeiro, a partir de conferências realizadas na Biblioteca Nacional em 1913, é o marco inicial dos estudos sistemáticos do folclore brasileiro.

Bumba meu boi

O folclore, além da literatura oral, abrange as festas religiosas e profanas, os folguedos, as brincadeiras infantis, as danças tradicionais, o vestuário e a culinária. No rol entram, também, as superstições e os costumes. Às vezes, se fundem texto, dança e gestual. É o caso do bumba meu boi, que, além de folguedo, é um auto popular bastante difundido, ligado ao ciclo de festas natalinas. Sua popularidade deve-se à importância que teve a pecuária no processo de colonização do País. Confunde-se com o que estudiosos classificam como ciclo do gado, a ponto de apresentar familiaridades com o conto popular O vaqueiro que não mentia. No enredo deste, a honestidade de um vaqueiro é posta à prova quando uma moça bonita o instiga a matar o boi favorito do patrão, pois deseja comer um pedaço: língua, fígado ou coração.

A origem do bumba-meu-boi remonta à mitologia da Grécia Antiga: Dionísio Zagreu, filho de Zeus e Perséfone, por instigação de Hera, foi morto, despedaçado e devorado pelos titãs. Zagreu estava, no momento de sua morte, metamorfoseado em touro. O seu coração, no entanto, foi recolhido por Atena e, devorado por Sêmele, deu origem ao segundo Dionísio, o deus do vinho. O despedaçamento ritual sobreviveu no folguedo. No Nordeste brasileiro, região de maior fixação do tema, os pedaços do boi geralmente são distribuídos entre os conhecidos de quem veste a armação representando o animal.

Dois mitos brasileiros

Alguns mitos abrangem todo o território nacional, embora de região para região difiram nas características e atribuições (que podem ser benéficas e maléficas). O Saci, por exemplo, representado como um menino negro girando ou correndo numa só perna, com um cachimbo de barro e um gorro vermelho na cabeça, resulta da fusão de crenças de origem europeias e africanas. Da Europa, ele herdou o gorro (barrete), dos duendes. Antes disso, os indígenas acreditavam tratar-se de um curumim peludo e travesso. Segundo a crença popular, para alguém capturar o saci é preciso, primeiro, atirar uma peneira no redemoinho em que ele quase sempre se oculta. De posse do gorro, o captor, então, terá o maroto Saci às suas ordens.

Do Curupira, originalmente um ente medonho que impunha terror aos habitantes da floresta, deriva o Pai do mato, conhecido no sudoeste da Bahia como “um velho horroroso”, também coberto de pelos, barba densa e cabelos desgrenhados, “protegendo os animais dos abusos dos caçadores”. É mais alto que a árvore mais alta da floresta e persegue os caçadores que violam os tabus ligados à sua atividade. O dia de São Bartolomeu, 24 de agosto, por exemplo, é interdito à caça. Nesse dia aziago, acreditam os caçadores, “o diabo está solto”.

Saci versus Halloween

O dia 31 de outubro, quando se comemora nos Estados Unidos o Dia das Bruxas (ou Halloween), foi escolhido para se comemorar, por aqui, o Dia do Saci. A proposta visa a combater a exagerada influência do Halloween na cultura brasileira. Algumas escolas, no dia, promovem atividades às quais as crianças devem comparecer caracterizadas como bruxas. A resposta brasileira parece ter surtido efeito, pois chamou atenção para a figura do Saci que se tornou, informalmente, uma espécie de mascote do folclore brasileiro.

Folclore e educação

As escolas geralmente trabalham o tema apenas em agosto que, institucionalmente, é o mês do folclore. No entanto, a cultura popular está mais presente em nossas vidas do que supomos. Inconscientemente, ao fazermos um gesto de saudação, podemos estar repetindo um exemplo surgido há milênios. O folclore é, segundo o grande estudioso do tema no Brasil, Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), “o milênio na contemporaneidade”.

Sem abrir mão da programação de agosto, outras atividades podem ser sugeridas. Desde a recolha de contos populares, lendas e adivinhas, até a encenação de autos tradicionais, a escola tem um papel fundamental na formação cultural dos seus alunos que fortalecerá, com a noção da consciência identitária, os alicerces da cidadania. As lendas de origem de uma comunidade, por exemplo, têm muito a dizer ao nosso povo. É o caso da cidade de Paratinga, na Bahia, cujo surgimento está diretamente ligado à religiosidade popular.

Localizada às margens do rio São Francisco, Paratinga já se chamou Santo Antônio do Urubu de Cima. Isto em 1718, quando deixou de ser arraial, passando a freguesia. A razão do nome incomum: uma imagem do santo português teria sido encontrada por um caçador num tronco de árvore. No galho “de cima”, a ave, de asas abertas, protegia o santo do calor do sol. No local, foi construída a capela onde o santo era venerado. A imagem teria sido deslocada para o santuário de Bom Jesus da Lapa – uma gruta transformada em igreja –, mas sempre retornava para o seu centro de devoção. Suas pegadas ficavam impressas na areia.

Lendas como a descrita acima podem ser recuperadas da memória popular a partir de um projeto pedagógico que valorize as manifestações tradicionais. O mesmo pode ser pensado em relação às quadras populares. Abaixo, alguns exemplos desta singela manifestação poética:


Amarrei o meu cavalo,
Amarrei às nove horas.
Esperando o meu benzinho,
Meu benzinho, até agora...

Soltei meu cavalo n’água,
Ele n’água se perdeu.
Nesse mundo não existe
Amor puro igual o meu.

Botei meu cavalo n’água
Só pra vê-lo ir nadando.
Se quiser ver meu amor,
Olhe só quem vem cantando.

Esta, que evoca o ciclo natalino, é de rara beleza:


Nossa Senhora com dor,
São José foi buscar luz.
São José não é chegado,
Nasceu nosso Bom Jesus.

Entendamos, finalmente, o folclore dentro de um processo dinâmico: em constante evolução. A soma de todas as manifestações tradicionais, de nossas crenças mais arraigadas, vivas e cotidianas, é uma das possíveis definições para folclore.

E quem souber mais histórias que conte outra!...

Nota: este artigo foi publicado originalmente na revista Páginas Abertas (Paulus) em agosto de 2010.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Lançamento

Contos populares do sertão e do mundo





No Brasil, não são muitas as coletâneas de contos populares, apesar da alardeada riqueza da nossa cultura popular e do empenho de estudiosos, como Sílvio Romero, Câmara Cascudo e Lindolfo Gomes. A publicação de Contos e fábulas do Brasil, pela editora Nova Alexandria, se reveste, por isso, de grande importância. Coligidos por Marco Haurélio, estes contos da tradição oral brasileira estão agora imortalizados em um livro que conta, também, com belíssimas ilustrações do artista plástico paraibano Severino Ramos.
A coletânea traz contos de animais, histórias de encantamento, religiosas e acumulativas. Há, ainda, notas esclarecedoras, assinadas pelo renomado pesquisador português, Paulo Correia, da Universidade do Algarve, mostrando o percurso das histórias, o número de versões existentes nos países de língua portuguesa e os similares de outros países.
Marco Haurélio, também, na abertura de cada seção, amparado em ampla pesquisa, num trabalho que dosa rigor e criatividade, aponta variantes das histórias colhidas por ele em outras coletâneas e até o reaproveitamento de muitas delas na literatura de cordel. Os leitores da obra dos Irmãos Grimm identificarão em Maria Borralheira a versão brasileira de Cinderela. E reconhecerão em O príncipe Teiú elementos da clássica história A bela e a fera e do conto mítico Eros e Psiquê, que integra O asno de ouro, escrito por Apuleio no século II d.C.
Segundo a professora Isabel Cardigos, referência mundial no estudo do conto popular, Contos e fábulas do Brasil, é “um livro fadado para ter a maior sorte: entre os adultos e entre aquelas crianças felizes a quem os adultos vão saber recontar estas histórias para que, com a ajuda da escrita, continue a correr a antiquíssima magia dos contos de tradição oral.”

Sobre o autor: Marco Haurélio, baiano de Riacho de Santana, é escritor, editor e pesquisador da cultura popular brasileira. No campo do folclore, além desteContos e fábulas do Brasil, escreveu Contos folclóricos brasileiros (Paulus). Para a coleção Clássicos em Cordel, da Nova Alexandria, adaptou A megera domada, de William Shakespeare, e O Conde de Monte Cristo, este um dos vencedores do Prêmio Mais Cultura de Literatura de Cordel – edição 2010.
Contos e fábulas do Brasil — Marco Haurélio
Ilustrações de Severino Ramos
ISBN 978-85-7492-265-2
16X23 cm — 216 págs.
Preço: R$ 38,00

Mais informações:
Janaína Gomes
2215-6252

Juliana Messias
2215-6252

Blog do livro:


sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Novos títulos enriquecem a coleção Clássicos em Cordel



A coleção Clássicos em Cordel, grande sucesso editorial da Nova Alexandria, ganha quatro novos títulos. A literatura brasileira sai prestigiada com versões rimadas de Canaã e A Escrava Isaura. O grande romance francês, O Conde de Monte Cristo, e a lenda do rei Artur também foram contemplados nesta etapa da coleção.

Responsável por uma elogiada adaptação de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis para o cordel, Varneci Nascimento, desta vez, se voltou para um autor do Romantismo: Bernardo Guimarães. Sua adaptação de A Escrava Isaura, romance publicado originalmente em 1875, dialoga com a história do Brasil, na época do Império, quando vigorava o vergonhoso regime da escravidão. As ilustrações são de Valdério Costa. Já Canaã, romance escrito pelo maranhense Graça Aranha e publicado em 1902, recebeu belo tratamento poético de Geraldo Amâncio, um dos grandes nomes do repentismo nordestino. Ilustrada por Klévisson Viana, a obra passeia pelo estado do Espírito Santo, nos primórdios da imigração alemã.

Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda, escrito por Cícero Pedro de Assis e ilustrado por Erivaldo, reúne vários episódios do chamado ciclo bretão, que engloba as lendas envolvendo o famoso governante. Personagem que pertence mais ao campo da lenda do ao da história, Artur é um dos mais belos motivos poéticos, e recebe, agora, a justa homenagem da literatura de cordel. O livro é apresentado pelo estudioso do cordel, Aderaldo Luciano. Outro personagem emblemático é Edmond Dantès, genial criação de Alexandre Dumas e protagonista de O Conde de Monte Cristo. O famoso romance francês, tantas vezes recriado pelo cinema, agora reaparece numa versão em cordel voltada para o público infantojuvenil. O texto de Marco Haurélio foi enriquecido pelas ilustrações de Klévisson Viana.

Grande sucesso em programas de governo e com inúmeras adoções em escolas de todo o Brasil, a coleção Clássicos em Cordel tem oferecido, em um novo formato, obras que valorizam esse gênero poético fundamental para afirmação de nossa identidade.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Cordel atemporal entrevista Rouxinol do Rinaré


Ele não veio ao mundo para ser mais um figurante. No papel que desempenha no mundo da Arte, Antônio Carlos da Silva brilha sob o nome artístico Rouxinol do Rinaré. Inicialmente publicou folhetos de cordel para, depois, estabelecer-se como autor de infantojuvenis, a exemplo de Um curumim, um pajé e a lenda do Ceará e O alienista em cordel. Durante vários anos foi revisor da Tupynanquim Editora, dirigida por Klévisson Viana. Hoje, colabora com o editorial do IMEPH, por onde tem vários títulos editados.



Quem é, afinal de contas, Rouxinol do Rinaré? De onde veio, para onde vai?

R – Nasci Antonio Carlos da Silva, em Rinaré, localidade de Quixadá (atualmente Banabuiú, pela emancipação deste distrito), sertão central do Ceará. O nome literário, Rouxinol do Rinaré, surgiu em 1999, como autodenominação, uma homenagem ao lugar onde nasci e ao pássaro canoro (embora eu não cante, rsrs.), madrugador que, fazendo seu ninho nos frechais da casa de minha infância, me despertou tantas vezes com seu canto que ficou na minha memória. Assim, como Rouxinol, assinei meus primeiros versos publicados em um jornalzinho em Pajuçara (atual distrito de Maracanaú) e em seguida meus primeiros cordéis.
De onde vim, já disse... para onde vou só Deus sabe. Rsrsr.

Como você chegou à literatura de cordel, ou ela chegou a você?

R – Sou de origem rural e, quando nasci, o entretenimento das bocas de noite no sertão era a leitura de “romances” e “folhetos”, os atuais cordéis. Desde que me entendi por gente ouvia meu irmão mais velho, Severino Batista, lendo os romances. Quando aprendi as primeiras letras, passei a ler também para meus pais e vizinhos nas debulhas de feijão e nas noites comuns (não tínhamos televisão).
Com a filha Julie Ane

Vários membros de sua família estão envolvidos com a poesia, incluindo sua filha Julie Ane e seu sobrinho Josué. Poderíamos chamar a família Silva de família Cordel?

R – “Família Cordel”, é ótimo, rsrsr. Quero confessar uma coisa: meu irmão mais velho, que já citei aqui, era metido a repentista e gostava muito de ler e escrever. Como meus pais viviam de lavoura e esse meu irmão não queria nada com serviço pesado era tido como vagabundo, “ovelha negra” (se é que ainda se pode usar essa figura de linguagem, rsrs.). Então, por muito tempo, ninguém lá em casa queria ser poeta, por causa da discriminação. Eu, que morei muito tempo com Severino, fui quem rompeu com isso. Enfrentei as gozações dos demais e comecei a escrever. Somente após publicar e conquistar alguns prêmios é que minha família parou com as gozações (perceberam que poesia tinha futuro, rsrs) e alguns outros irmãos meus começaram a assumir seus talentos de poeta, a começar pelo Evaristo Geraldo. Tem mais o Godofredo (o mais novo dos onze) e o Armando que também escrevem. E agora a nova geração da “Família Silva” (como diria o Klévisson): minha filha Julie Ane e Josué (filho do Evaristo).

Cite cinco cordelistas que tenham exercido influência em sua obra.

R – Leandro Gomes de Barros, José Camelo, Delarme Monteiro, José Pacheco e Joaqim Batista de Sena, sendo que, de todos, me identifico mais com Delarme.

E, no presente, quem não desafina quando a missão é honrar o legado do velho Leandro Gomes de Barros?

R – Vixe... agora o bicho pega! (rsrs). Mestre Azulão, Arievaldo Viana, Marco Haurélio, Klévisson Viana, Josenir Lacerda... gosto também de Antonio Francisco de Mossoró, pela poética rica em enredo e figuras de linguagem, embora ache que ele escreve mais pra recitar (poemas curtos), faltando-lhe trabalhos “de fôlego” como os romances, peculiares aos grandes cordelistas. Existem outros “esforçados” que, com muita leitura e prática da escrita, chegarão lá.
Um clássico do cordel contemporâneo

De onde veio a inspiração para escrever O Guarda-Floresta e o Capitão de Ladrões?

R – “O Capitão de Ladrões” surgiu de uma história de exemplo que meu pai contava e anos depois (quando comecei escrever) li algo semelhante em um velho livro, datado de 1935, por título “Pérolas esparsas”, com vários contos sem indicação de autoria. Daí achando interessante o enredo adaptei-o, modificando algumas coisas, inclusive os nomes dos personagens.

Você é dos raros cordelistas que, atualmente, escrevem histórias de aventuras. Por que a escassez de obras em um gênero tão rico?

R – Creio que as grandes histórias (tanto as de aventura como outros gêneros dos nossos romances) quase desapareceram no período de crise do Cordel. Para os poetas em atividade nesse período talvez fosse mais cômodo fazer folhetos noticiosos e outros tais, “magrelinhos”, com poucas páginas pra facilitar a publicação... Na nossa geração ainda há muitos que só sabem fazer “folhetinhos” de 08 e, no máximo, de 16 páginas por falta do que dizer, por não saber contar uma história com início, meio e fim. Daí a enxurrada de folhetos temáticos (estilo verso de cantador, de improviso, sem enredo). Nada contra os cantadores, pois alguns também se revelaram bons cordelistas. Só que para isso precisaram sentar “na banca” e escrever, como nós, pois não se cria “romances” de improviso. Daí a diferença do Repentista pra o Cordelista.
Quem hoje escreve romances de fôlego (longas histórias, com bom enredo, início, meio e fim) com certeza tem raízes, tem influências das leituras dos grandes mestres do Cordel. E, como bem disse você, são raros os que o fazem (principalmente sem entediar os leitores).
Caracterizado como Tex em caricatura de Kazane

Você é fã de quadrinhos, em especial da revista Tex. Há preconceito no meio cordelístico contra os quadrinhos e seus leitores?
R – Não sei te dizer... Conheço muitos cordelistas que gostam de quadrinhos, além de mim. Se alguém em nosso meio tem esse tipo de preconceito eu, particularmente, não ligo, continuarei lendo e gostando de quadrinhos (rsrsr), pois devo a esses dois gêneros (o Cordel e os HQ’s) a minha formação como leitor.
O que é esse tal de novo cordel, do qual tanto se fala?

R – Para mim admitir a ideia de “Um novo Cordel” é admitir o que têm pregado muitos pseudos pesquisadores: que o Cordel se caracteriza pelo formato, capa, composição gráfica etc. Ao contrário creio que o Cordel se caracteriza pela sua composição textual. O mais tem sempre se modificado, desde os primórdios do gênero.

E a novela Cordel Encantado? Você assiste? 

R – Devido o meu horário de trabalho não tenho assistido assiduamente. Mas assisti algumas vezes sim. Se alguém me pergunta ( e já perguntaram): Você acha que o cordel agora vai ficar em alta por causa da novela? Eu respondo: O Cordel já está em alta, por isso fizeram a novela. A Globo jamais faria essa média (ou mídia?) se o Cordel estivesse esquecido. Foi a resistência, a insistência, dos poetas que fizeram o Cordel chegar aonde chegou.

Você escreveu alguns cordéis sobre Raul Seixas. O que o Maluco Beleza tem a ver com a poesia bárdica do Nordeste?

R – Muitos só enxergam no Raul o roqueiro, o maluco. Mas o Raul era muito antenado... era um leitor que, antes de ser cantor, sonhava em ser escritor. Quando criança ouvia Luiza Gonzaga (que também o influenciou), o famoso rock-baião entre suas músicas. E, quanto ao Cordel, em muitas de suas composições há elementos claros de nossa poética, como a rima e até métrica, entre as quais destaco a música “Os números”, composta em sextilhas.
Xilogravura de Erivaldo para o livro
O Alienista em cordel

Por falar em loucura, um de seus maiores sucessos é a adaptação em cordel do conto O Alienista, de Machado de Assis. Fale um pouco sobre essa obra e sobre sua parceria com o mestre maior da literatura brasileira.

R – Sempre gostei de Machado de Assis. Lembro que quando criança li algo sobre “O Bruxo do Cosme Velho” num livro didático chamado Novo Nordeste, onde se dizia da dificuldade dele para se alfabetizar. Me identifiquei muito, devido minha própria experiência de dificuldades nesse sentido... O primeiro livro que li do Machado foi Dom Casmurro. Uma jovem, filha de um vizinho, veio me pedir pra ajudá-la numa tarefa escolar e adivinhem o que era? – Fazer um resumo de um livro: “Dom Casmurro”.
Desde então já li muito Machado Assis. Quando a Nova Alexandria (por seu intermédio) me convidou a fazer parte da coleção Clássicos em Cordel e vi na relação de autores Machado de Assis, não tive dúvidas. Escolhi O Alienista por ser um dos contos da fase mais madura do escritor e um dos que mais gosto também. Li três vezes, antes de começar a adaptação para o Cordel.

Coincidência ou não o livro foi publicado no ano do centenário de morte de Machado de Assis. Hoje é um dos trabalhos que mais tem me dado retorno financeiro! Isso é o que chamo de “unir o útil ao agradável”.

Para encerrar, deixe uma mensagem – que não precisa ser edificante – para os raros leitores deste blog.

R – A minha mensagem é a que sempre falo nas oficinas e encontros com alunos das escolas onde meus trabalhos têm sido adotados: “O gosto pela leitura pode transformar vidas! Eu sou um exemplo disso... comecei ouvindo os romances, passei a lê-los e, hoje vivo e sustento uma família com minha literatura. Com as várias possibilidades que o Cordel tem gerado”.
E obrigado ao Blog, por mais este espaço.

Relembrando o Rei do Baião


2 de agosto. Há exatos 22 anos partia deste mundo Luiz Gonzaga do Nascimento, o Rei do Baião, gigante da nossa cultura. Para lembrar a data e homenagear o Rei Luiz, republico, com algumas atualizações, o artigo originalmente publicado na revista eletrônica Music News:


Asa Branca: Horrores e Louvores

O jornalista Assis Ângelo resolveu inovar em vários aspectos quando da preparação do seu Dicionário Gonzagueano, de A a Z. Além de reunir o maior número de informações acerca das músicas originalmente gravadas por Luiz Gonzaga, o Dicionário é apresentado por um poeta popular, o consagrado cantador pernambucano Oliveira Francisco de Melo, ou Oliveira de Panelas – como a Arte o rebatizou. Estão reunidos numa única estrofe em martelo agalopado (dez versos de dez sílabas) informações sobre o local e a data de nascimento, a trajetória musical e a partida, a dois de agosto de 1989, do Rei do Baião. Que biógrafo, por mais abalizado, manteria tal poder de síntese?

Vejamos:

Na fazenda Caiçara ele nasceu
Dia 13, dezembro o ano doze
Superar seu reinado ninguém ouse
Pois aos gênios o mundo se rendeu
Dezenove, oito nove, faleceu
Dia dois de agosto, triste dia!
A sanfona calou a melodia
O Baião não tem mais substituto
o Nordeste gemeu e botou luto
Pela falta de sua companhia.

Hoje é consenso entre os poetas populares reconhecer a importância de Luiz Gonzaga e render louvores ao seu incomparável legado musical. Mas nem sempre foi assim. No velho folheto Os horrores que a Asa Branca traz, o pernambucano, de Limoeiro, Vicente Vitorino de Melo atribui muitas catástrofes naturais, inclusive as ocorridas fora do Nordeste, ao fato de muita gente entoar o hino gonzagueano. Na visão do poeta, terra que arde “qual fogueira de São João” só pode ser o inferno.
Pode?!

Ele afirma ter ouvido do próprio Frei Damião, numa prédica em Sobral, CE, as severas advertências, e exorta o povo a abandonar a “moda”, para evitar piores conseqüências. Os versos “Que braseiro, que fornalha/ Nenhum pé de plantação” interpretados erroneamente ensejam ao poeta associá-los à árvore primordial do conhecimento e da ciência:

Quando diz que na fornalha
tem um pé de plantação
será da árvore maldita
do fruto da maldição
deste fruto que se colhe
o sabor da perdição.

Mais adiante, através dos versos toscos do poeta, o frade italiano solta mais uma imprecação:

Será da parte do cão
quem uma moda desta inventa
quem canta ela se alegra
sua alma chora e lamenta
de seu corpo condená-la
o satanás se contenta.

Vôte!!!

Agora o outro lado: Klévisson Viana, um dos timoneiros da nova geração de vates populares, é quem, sem querer, responde ao conservador Vicente Vitorino. No folheto Lua do Sertão, a história de um Rei, o encontro de Gonzaga com o parceiro Humberto Teixeira é atribuído à Providência Divina:

Pois foi Deus quem colocou
Humberto no seu destino:
Criaram muitos sucessos
Cada qual mais genuíno
Inclusive a Asa Branca
Que no Nordeste é um hino.

Curiosamente, o que aproxima os dois poetas é a visão determinista que pontua suas obras, com ressonância em quase todos os grandes autores de cordel, que veem o Destino como uma divindade intangível. Herança pré-cristã que santo Agostinho fez questão de preservar.

 
Folheto comemorativo com capa assinada por Jô Oliveira


O fato é, dia 3 de março de 2007, a toada Asa Branca completou 60 anos de gravação por Luiz Gonzaga. Um folheto comemorativo foi lançado para marcar a data histórica, e em suas páginas poetas de bancada e repentistas de nomeada desenvolveram glosas a partir do mote decassílabo: “Foi Voando nas Asas da Asa Branca/ Que Gonzaga escreveu a sua História”, nascido da cachola do autor destas linhas. O poeta cearense Moreira de Acopiara contribuiu com duas belas estrofes em martelo. Mas o mote rendeu mais estes versos, publicados na revista De Repente, do Piauí:

Hoje em dia a sanfona de Luiz
Deve estar recheada de poeira.
Asa Branca marcou sua carreira,
E por onde cantou pediram bis.
Com orgulho alegrou o seu país,
Foi espécie de carta precatória,
Deixou nome, sucesso, fama e glória,
Seu talento de Rei ninguém desbanca.
Foi voando nas asas da Asa Branca
Que Gonzaga escreveu a sua história.

As estrofes de abertura, de minha autoria, descerraram as cortinas da coletânea:

Nos meus versos de cunho popular
Busco n’alma divina inspiração,
Porque é de Luiz, Rei do Baião
Que agora os poetas vão falar,
E o Brasil sertanejo vai mostrar
Que não é desprovido de memória,
Relembrando a incrível trajetória
De um mito que o tempo não desbanca –
Foi voando nas asas da Asa Branca
Que Gonzaga escreveu a sua história.


Dos acordes de um grande brasileiro,
Um intérprete da alma de seu povo,
Sai um canto que sempre será novo,
Amoroso, sincero, alvissareiro.
Entre os hinos do seu cancioneiro,
O que fala duma ave migratória
Conferiu a Luiz eterna glória
Para além desta vida que se estanca.
Foi voando nas asas da Asa Branca
 
Que Gonzaga escreveu a sua história.


Eu também levo o fardo do migrante
Carregando amor com melancolia,
Que abastecem a minha poesia,
Semeada em terra tão distante.
E se a vida me fez um retirante,
Não me rendo à tão cruel escória,
Antes canto a verve meritória
Que ao gênio, lhe serve de alavanca.
Foi voando nas asas da Asa Branca
Que Gonzaga escreveu a sua história.


Ilustração de Arievaldo Viana

Arievaldo Viana, em A trajetória de Luiz, Rei do Baião, reafirma o valor de Asa Branca como hino do Nordeste:

Querendo consolidar
A sua bela carreira
Nosso Gonzaga encontrou
O grande Humberto Teixeira
E com este advogado
Um cearense danado
Poeta de alma franca
Desenvolveu o baião
E mostrou para o sertão
O nosso hino ASA BRANCA.

Tenha ou não Frei Damião vociferado contra a “moda da Asa Branca” e seu divulgador, a verdade é que Luiz Gonzaga gravou, em 1974, o xote Frei Damião, de Janduhy Finizola, numa interpretação em que deu o melhor de sua voz e de sua alma cabocla e devota, louvando o frade italiano, que no Nordeste se fez missionário:

Pecador, te ajoelha
Quem em Deus que se espelha
Só pode ter de frei Damião
Sua proteção.

Bom cristão, Gonzaga também lamentava “os desmantelos do mundo”, mas sempre com bom humor, mantendo-se a anos luz da aridez dos versos de Vicente Vitorino. E a dolorosa atualidade de Asa Branca ratifica a sua condição de hino de um Nordeste que ainda clama por justiça social, tão escassa quanto as “águas da chuva”.

Nota: Em 2009, tive a honra de editar, pela Nova Alexandria, o livro O jovem Luiz Gonzaga, de Roniwalter Jatobá