quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Folclore e identidade

Folclore não sai de moda.
É catira, cururu,
É frevo, samba-de-roda,
Baião e maracatu.
São noites mal-assombradas,
São aboios e toadas,
É lamparina e pilão.
É visagem e mau agouro,
É gibão, chapéu de couro
E debulha de feijão.

Moreira de Acopiara, cordelista cearense



A palavra folclore (em inglês folk-lore) foi empregada pela primeira vez em 22 de agosto de 1846. O arqueólogo inglês Willians Johns Thoms, em artigo endereçado à revista The Atheneum, assinado sob o pseudônimo Ambrose Merton, foi o pioneiro. O termo abrangia o que Thoms entendia por “antiguidades populares”: contos, lendas, provérbios, mitos, romances, crenças, rifões superstições etc. Nesse artigo, nota-se a preocupação com o desaparecimento das tradições populares face à modernização dos costumes. A mesma apreensão já havia levado dois filólogos alemães, os irmãos Jakob e Wilhelm Grimm, a coletarem histórias e lendas do povo de seu país, reunidas posteriormente no Kinder- und Hausmärchen (Contos da criança e do lar, 1812), a mais famosa coletânea de contos populares já feita.

No Brasil, a partir dos pioneiros Celso de Magalhães (1849-1879), Couto de Magalhães (1836-1898) e Silvio Romero (1851-1914)), pesquisadores das mais diversas áreas vêm dedicando tempo e envidando esforços na tentativa de entender as manifestações da cultura espontânea. Com Cantos populares do Brasil e Contos populares do Brasil, o sergipano Silvio Romero deu o impulso necessário à pesquisa do folclore, embora seu trabalho se detivesse mais na recolha de modalidades da literatura oral do que no estudo do material. A publicação do livro O folclore, por João Ribeiro, a partir de conferências realizadas na Biblioteca Nacional em 1913, é o marco inicial dos estudos sistemáticos do folclore brasileiro.

Bumba meu boi

O folclore, além da literatura oral, abrange as festas religiosas e profanas, os folguedos, as brincadeiras infantis, as danças tradicionais, o vestuário e a culinária. No rol entram, também, as superstições e os costumes. Às vezes, se fundem texto, dança e gestual. É o caso do bumba meu boi, que, além de folguedo, é um auto popular bastante difundido, ligado ao ciclo de festas natalinas. Sua popularidade deve-se à importância que teve a pecuária no processo de colonização do País. Confunde-se com o que estudiosos classificam como ciclo do gado, a ponto de apresentar familiaridades com o conto popular O vaqueiro que não mentia. No enredo deste, a honestidade de um vaqueiro é posta à prova quando uma moça bonita o instiga a matar o boi favorito do patrão, pois deseja comer um pedaço: língua, fígado ou coração.

A origem do bumba-meu-boi remonta à mitologia da Grécia Antiga: Dionísio Zagreu, filho de Zeus e Perséfone, por instigação de Hera, foi morto, despedaçado e devorado pelos titãs. Zagreu estava, no momento de sua morte, metamorfoseado em touro. O seu coração, no entanto, foi recolhido por Atena e, devorado por Sêmele, deu origem ao segundo Dionísio, o deus do vinho. O despedaçamento ritual sobreviveu no folguedo. No Nordeste brasileiro, região de maior fixação do tema, os pedaços do boi geralmente são distribuídos entre os conhecidos de quem veste a armação representando o animal.

Dois mitos brasileiros

Alguns mitos abrangem todo o território nacional, embora de região para região difiram nas características e atribuições (que podem ser benéficas e maléficas). O Saci, por exemplo, representado como um menino negro girando ou correndo numa só perna, com um cachimbo de barro e um gorro vermelho na cabeça, resulta da fusão de crenças de origem europeias e africanas. Da Europa, ele herdou o gorro (barrete), dos duendes. Antes disso, os indígenas acreditavam tratar-se de um curumim peludo e travesso. Segundo a crença popular, para alguém capturar o saci é preciso, primeiro, atirar uma peneira no redemoinho em que ele quase sempre se oculta. De posse do gorro, o captor, então, terá o maroto Saci às suas ordens.

Do Curupira, originalmente um ente medonho que impunha terror aos habitantes da floresta, deriva o Pai do mato, conhecido no sudoeste da Bahia como “um velho horroroso”, também coberto de pelos, barba densa e cabelos desgrenhados, “protegendo os animais dos abusos dos caçadores”. É mais alto que a árvore mais alta da floresta e persegue os caçadores que violam os tabus ligados à sua atividade. O dia de São Bartolomeu, 24 de agosto, por exemplo, é interdito à caça. Nesse dia aziago, acreditam os caçadores, “o diabo está solto”.

Saci versus Halloween

O dia 31 de outubro, quando se comemora nos Estados Unidos o Dia das Bruxas (ou Halloween), foi escolhido para se comemorar, por aqui, o Dia do Saci. A proposta visa a combater a exagerada influência do Halloween na cultura brasileira. Algumas escolas, no dia, promovem atividades às quais as crianças devem comparecer caracterizadas como bruxas. A resposta brasileira parece ter surtido efeito, pois chamou atenção para a figura do Saci que se tornou, informalmente, uma espécie de mascote do folclore brasileiro.

Folclore e educação

As escolas geralmente trabalham o tema apenas em agosto que, institucionalmente, é o mês do folclore. No entanto, a cultura popular está mais presente em nossas vidas do que supomos. Inconscientemente, ao fazermos um gesto de saudação, podemos estar repetindo um exemplo surgido há milênios. O folclore é, segundo o grande estudioso do tema no Brasil, Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), “o milênio na contemporaneidade”.

Sem abrir mão da programação de agosto, outras atividades podem ser sugeridas. Desde a recolha de contos populares, lendas e adivinhas, até a encenação de autos tradicionais, a escola tem um papel fundamental na formação cultural dos seus alunos que fortalecerá, com a noção da consciência identitária, os alicerces da cidadania. As lendas de origem de uma comunidade, por exemplo, têm muito a dizer ao nosso povo. É o caso da cidade de Paratinga, na Bahia, cujo surgimento está diretamente ligado à religiosidade popular.

Localizada às margens do rio São Francisco, Paratinga já se chamou Santo Antônio do Urubu de Cima. Isto em 1718, quando deixou de ser arraial, passando a freguesia. A razão do nome incomum: uma imagem do santo português teria sido encontrada por um caçador num tronco de árvore. No galho “de cima”, a ave, de asas abertas, protegia o santo do calor do sol. No local, foi construída a capela onde o santo era venerado. A imagem teria sido deslocada para o santuário de Bom Jesus da Lapa – uma gruta transformada em igreja –, mas sempre retornava para o seu centro de devoção. Suas pegadas ficavam impressas na areia.

Lendas como a descrita acima podem ser recuperadas da memória popular a partir de um projeto pedagógico que valorize as manifestações tradicionais. O mesmo pode ser pensado em relação às quadras populares. Abaixo, alguns exemplos desta singela manifestação poética:


Amarrei o meu cavalo,
Amarrei às nove horas.
Esperando o meu benzinho,
Meu benzinho, até agora...

Soltei meu cavalo n’água,
Ele n’água se perdeu.
Nesse mundo não existe
Amor puro igual o meu.

Botei meu cavalo n’água
Só pra vê-lo ir nadando.
Se quiser ver meu amor,
Olhe só quem vem cantando.

Esta, que evoca o ciclo natalino, é de rara beleza:


Nossa Senhora com dor,
São José foi buscar luz.
São José não é chegado,
Nasceu nosso Bom Jesus.

Entendamos, finalmente, o folclore dentro de um processo dinâmico: em constante evolução. A soma de todas as manifestações tradicionais, de nossas crenças mais arraigadas, vivas e cotidianas, é uma das possíveis definições para folclore.

E quem souber mais histórias que conte outra!...

Nota: este artigo foi publicado originalmente na revista Páginas Abertas (Paulus) em agosto de 2010.

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