terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Peleja virtual



A título de informação


Por Marco Haurélio

Pelejas virtuais não são incomuns em tempos de redes sociais e de serviços de mensagens instantâneas. Braulio Tavares, por exemplo, já havia contendido com Klévisson Viana e Astier Basílio. As várias modalidades foram debulhadas em trocas de e-mails, portanto, ainda sem a presença de uma “plateia”. Não parece, mas disputas do tipo vêm de longe, desde 1997, quando Américo Gomes, da Paraíba, e José Honório, de Pernambuco, desfraldaram a bandeira. Há inclusive uma pesquisa ampla, um inventário transformado em tese de doutoramento e em livro, com o inusitado título No Visgo do Improviso ou a Peleja Virtual entre a Cibercultura e Tradição, de autoria da professora Maria Alice Amorim.

O diferencial desta nova peleja é que o palco foi a maior das redes sociais, o Facebook, entre os dias 7 e 14 de setembro, nos poucos minutos de folga de que dispúnhamos. E, como em todo bom pé-de-parede, a nossa gesta virtual foi acompanhada por um grande público, com sugestões de temas e motes e eventuais aplausos. Começamos com a tradicional sextilha, evoluímos para o martelo agalopado, com mote proposto pelo poeta, pesquisador e apologista Ésio Rafael, passamos à gemedeira, por sugestão do também poeta Rouxinol do Rinaré, e ao galope à beira-mar (versos hendecassílabos). A disputa abarcou ainda outras modalidades: No tempo de Pai Tomás, Preto Velho e Pai VicenteNos oito pés a quadrão (oitavas), martelo alagoano (decassílabos). Os versos de despedida foram embalados pelo mote Povo bom, muito obrigado/ Adeus, até outro dia!

Agora publicada em folheto pela Tupynanquim Editora, de Klévisson Viana, com capa em xilogravura de Maércio Siqueira, a peleja alcança novos leitores, promovendo o casamento antes inimaginável da tecnologia com a tradição.

Abaixo, parte da peleja, em galopes à beira-mar (versos de 11 sílabas com tônicas na 2ª, 5ª, 8ª e 11ª sílabas):

MH
Mudando de estilo, por outras paragens,
Sigamos agora com nossa peleja:
Da grimpas dos Andes à chã sertaneja,
O verso permite diversas viagens.
Sem Timothy Leary a encher as bagagens,
Com fome e com sede do eterno buscar,
Nas tábuas de argila, nas mesas do bar,
Na longe Cocanha ou na caixa-prego
Na luz escondida nos olhos do cego,
Nos dez de galope na beira do mar.

BT
A rima deixada é a mesma que eu pego,
E ligo o motor pra subir nas alturas,
Nas asas do vento das literaturas
Eu vôo e eu nado, mergulho e navego.
Meu verso é composto de peças de Lego
É só ir pegando e depois encaixar
Formando um conjunto que dê pra cantar
Dizendo as belezas do mundo da escrita
Em verso e em prosa se escreve e recita
Cantando galope na beira do mar.

MH
Na velha Tebaida, me fiz eremita,
De lá alcei voo pra os mares do sul,
Vi Constantinopla virar Istambul,
E a sanha cruzada na terra ‘bendita’;
Vi Fitzcarraldo, com grande pepita,
Na verde floresta querer navegar,
Cantando uma loa para o rei Lear,
Pensando se estava tão longe ou tão perto.
Cansado de tudo, voltei ao deserto,
Sonhando que estava na beira do mar.

BT
Tornei-me famoso por ter descoberto
os grandes tesouros de terras distantes;
lutei contra gregos, salvei os atlantes,
mostrei a Colombo o caminho mais certo.
Na Besta Fubana do tal Luís Berto
montei corajoso e me pus a voar,
cruzando o espaço na luz do luar
por entre uma nuvem de naves e drones
igual um dragão de um Game of Thrones
cantando galope na beira do mar.

MH
Na terra tomada por fogo e ciclones,
Sorri o tirano de juba acaju,
Sentindo no rabo o tridente de Exu,
Enquanto se estorce na guerra dos clones;
E sobre as ruínas não há cicerones,
Nem sheiks barbudos e nem lupanar.
A paz posta a ferros, a guerra a gritar
E agentes laranjas trazendo pavor,
Deixando giestas na cova do amor
Nos dez de galope na beira do mar.

BT
País que se preza não quer salvador
Nação com moral não precisa de heróis
Precisa de votos, precisa de voz,
Lutando, cantando, do jeito que fôr.
Na hora difícil se sente o valor
Do quanto se perde e não pode salvar,
A guerra é a guerra, a terra é o lar,
O chão é do povo, a vida é da gente,
O mundo é cruel, mas a alma é valente
Nos dez de galope na beira do mar.

Pedidos: marcohaurelio@gmail.com
                 
                (11) 9 8347 4357


O Boi-Espácio

Barbatão. Xilogravura de Lucélia Borges

Eu tinha meu Boi-Espácio,
Qu'era meu boi corteleiro,
Que comia em três sertão,
Bebia na Cajazeira,
Malhava lá no oiteiro,
Descansava em Riachão.
Eu tinha meu Boi-Espácio,
Meu boi preto caraúna;
Por ter a ponta mui fina,
Sempre fui botei-lhe a unha.
Estava na minha casa,
Na minha porta assentado; .
Chegou seu Antonio Ferreira,
Montado no seu rução.

Com o irmão de Damião.
Montado no seu lazão;
Dizendo de coração:
—— Botai-me este boi no chão.
Gritei pelo meu cachorro,
Meu cachorro Tubarão:
"Agora, meu boi, agora,
Faz ato de contrição!
Ecô, meu cachorro ecô!..."
No curral da Piedade
Eu dei com meu boi no chão.
Ao depois do boi no chão,
Chegou o moleque João,
Se arrastando pelo chão,
Fazendo as vezes de cão,
Pedindo o sebo do boi
Pra temperar seu feijão.
A morte deste meu boi
A todos fizera pena;
Ao depois deste boi morto
Cabou-se meu boi, morena.
"No ano em que eu nasci,
No outro que me criei,
No outro que fui bezerro,
No outro que fui mamote,
No outro que fui garrote,
No outro que me caparam
Andei bem perto da morte.
"Minha mãe era uma vaca,
Vaquinha de opinião;
Ela tinha o ubre grande
Que arrastava pelo chão.
Minha mãe era uma vaca,
Vaquinha de opinião;
Enquanto fui barbatão
Nunca entrei em curralão,
Estava no meu descanso
Debaixo da cajazeira,
Botei os olhos na estrada,
Lá vinha seu Antonio Ferreira...
Estando numa malhada
Já na sombra recolhido,
Logo que vi o Ferreira
Ali achei-me perdido.
Foi-me tudo ao contrário,
E semprei fui perseguido;
Já me conhecem o rasto,
O Boi-Espácio está perdido.
Não tem a culpa o Ferreira,
Que não me pôde avistar,
Foi o caboclo danado
Que parte de mim foi dar.
O seu Antonio Ferreira
Tem três cavalos danados:
O primeiro é o ruço,
O segundo é o lazão,
O terceiro é o Piaba...
Três cavalo endiabrados!

Mas eu não temo cavalo,
Que se chama o Deixa-fama,
Tambem não temo o vaqueiro
Que derrubei lá na lama.
Me meteram no curral,
Me trancaram de alçapão;
E bati num canto e noutro,
Não pude sair mais não!
Adeus, fonte onde eu bebia,
Adeus, pasto onde eu comia,
Malhador onde eu malhava;
Adeus, ribeira corrente,
Adeus, caraíba verde,
Descanso de tanta gente!...

O couro do Boi-Espácio
Deu cem pares de surrão,
Para carregar farinha
Da praia de Maranhão.
O fato do Boi-Espácio
Cem pessoas a tratar,
Outras cem para virar...
O resto pra urubusada.
O sebo do Boi-Espácio
Dele fizeram sabão
Para se lavar a roupa
Da gente lá do sertão.
A língua do Boi-Espácio,
Dela fizeram fritada;
Comeu a cidade inteira,
Não foi mentira, nem nada.
Os miolos do Boi-Espácio,
Deles fez-se panelada;
Comeu a cidade inteira,
O resto pra cachorrada.
Os cascos do Boi-Espácio,
Deles fizeram canoa,
Para se passar Marotos
Do Brasil para Lisboa.
Os chifres do Boi-Espácio,
Deles fizeram colher
Para temperar banquetes
Das moças de Patamuté.
Os olhos do Boi-Espácio,
Deles fizeram botão
Para pregar nas casacas
Dos moços lá do sertão.
Costelas do Boi-Espácio,
Delas se fez cavador
Para se cavar cacimbas;
De duras não se quebrou.
O sangue do Boi-Espácio
Era de tanta exceção
Que afogou a três vaqueiros,
Todos três de opinião.
Canelas do Boi-Espácio
Delas se fizeram mão
Para pisar o milho
Da gente lá do sertão.
E da pá do Boi-Espácio,
Dela se fez tamborete
Para mandar de presente
A nosso amigo Cadete.
Do rabo do Boi-Espácio,
Dele fizeram bastão
Para as velhas de cima]
Andar com ele na mão.

[Silvio Romero, Cantos populares do Brasil]

José Pacheco: 120 anos de um mestre


Jose Paulo Ribeiro, de Guarabira (PB), pesquisador do cordel que dispensa os holofotes e bravatas em favor da boa informação, lembra-nos que, há exatos 120 anos, em Correntes (PE), nascia José Pacheco da Rocha, autor da obra-prima do cordel A Chegada de Lampião no Inferno. Apesar de identificado com temas jocosos, por ser autor dos igualmente clássicos folhetos A Intriga do Cachorro com o Gato e A Festa dos Cachorros, Pacheco foi exímio romancista, destacando-se, em sua bibliografia, Os Prantos de Cacilda e a Vingança de Raul, A Princesa Rosamunda e a Morte do Gigante e Vicente e Josina.