O folclorista
russo Vladímir Propp, no clássico estudo Édipo à luz do folclore, analisa um motivo
recorrente nos contos tradicionais: a tentativa de evitar-se uma profecia
condenando-se à morte o provável causador do futuro dano. Geralmente, o herói
(ou a heroína) tem um rei (ou uma rainha) como antagonista. A tentativa de
“reparação” sempre dá errado e a pessoa condenada à morte — há exemplos de
ambos os gêneros — escapa graças a um acesso de compaixão por parte do carrasco
e, depois de muitas peripécias, termina por confirmar a predição. Além de
Édipo, enviado à morte pelo próprio pai, Laio, na vã tentativa de mudar um
destino terrível para toda a família, temos, ainda na mitologia grega, o
exemplo de Perseu, condenado a morrer com sua mãe Dânae, numa caixa de madeira
jogada no oceano. Acrísio, rei de Argos, responsável pela sentença, temia a
realização de uma profecia segundo a qual seria morto por seu neto.
O exemplo mais
famoso, na literatura oral, é o de Branca de Neve, conto conhecido
mundialmente desde que os Irmãos Grimm o recolheram, na Alemanha, salvando-o do
desaparecimento, e publicando-o no clássico livro Contos da criança e do lar. No mesmo
livro, encontramos outro conto, Os três fios de cabelo de ouro do diabo, em que um
rei, temeroso de que sua filha venha a desposar um pobre, busca eliminá-lo de
todas as maneiras. Por estas paragens, Maria de Oliveira, dos Contos tradicionais do Brasil, de
Câmara Cascudo, talvez seja o mais característico. Em Portugal, Teófilo Braga
recolheu Maria da
Silva, história que pode ser lida nos Contos tradicionais do povo português.
Na literatura de
cordel, encontramos, ainda, A princesa Anabela e o filho do lenhador, de
Severino Borges, com o mesmo motivo e a tentativa frustrada de se evitar uma
profecia calamitosa (para o rei). Outro exemplo clássico, no cordel, é Dimas e Madalena nos
labirintos da sorte, de Manoel Pereira Sobrinho, em que o rei Simão,
para evitar a profecia funesta — sua filha Madalena “Trouxe a infeliz sorte/ de
se casar na pobreza” —, ordena a morte de todos os meninos da Grécia,
rememorando o episódio bíblico da “matança dos inocentes” pelo rei Herodes, do
Evangelho segundo São Mateus.
O presente
trabalho ampara-se também na tradição, posto que se baseia em um conto
tradicional popular por mim na Bahia, A princesa e o filho da criada, que integra o
livro Contos
folclóricos brasileiros (Paulus, 2010). Mesmo com as adaptações
próprias de uma recriação literária, deixa entrever, aos curiosos, a crença
antiquíssima na infalibilidade do destino.
Ilustração de Arlene Holanda |
Acima reproduzida está a apresentação que fiz do livro O pobre que trouxe a sorte de casar com uma princesa (Armazém da Cultura), que integra a belíssima coleção Reinos do Cordel, sob coordenação de Arlene Holanda, que assina, ainda, as ilustrações deste livro.
Trecho:
Peço à Musa inspiradora
Que minha mente não canse
E eu possa versar um conto
Descrevendo cada lance
De uma história comovente
Neste meu novo romance.
Há cerca de nove séculos
Num reino muito distante
Viveu Gusmão, um mau rei,
De orgulho extravagante.
Não houve e não haverá
Outro assim tão arrogante.
Seu imenso poderio
Não conhecia empecilho,
Mas há um tempo seus olhos
Haviam perdido o brilho,
Pois, apesar de tão rico,
Ainda não tinha filho.
A rainha, sua esposa,
Vivia desconsolada,
Pois para o cruel marido
Ela só era a culpada,
E, por mais que se explicasse,
Não podia fazer nada.
Luzia, a sua criada,
Ouvia a sua lamúria,
Ela também conhecia
O monarca e sua fúria.
Assim vivia a rainha
Sempre coberta de injúria.
Até que um dia, cansada,
Ela foi ao oratório
E fez um pedido a Deus,
— Senhor, nesse dia inglório,
Eu venho aqui implorar
Livrai-me do purgatório.
Vós sabeis que vivo triste
E o meu espoco cabreiro,
Pois o reino que governa
Ainda não tem herdeiro.
Por isso peço o auxílio
Do grande Deus verdadeiro.
Então, no dia seguinte,
Ela estava diferente,
A tristeza fora embora,
E, agora, muito contente,
Sentiu que era atendida
Pelo Deus onipotente.
Em breve, porém, chegou
A feliz confirmação.
A rainha em gravidez,
Não escondia a emoção.
Até o severo esposo
Abrandou o coração.
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