sábado, 29 de fevereiro de 2020

Joias da tradição oral de Moçambique



Boas novas! Foi lançado, pela Editora de Cultura, o livro Ithale: fábulas de Moçambique, de Artinésio Widnesse, ilustrado com xilogravuras de Lucélia Borges e com projeto gráfico de Camila Teresa. Artinésio, que morou no Brasil e possui um doutorado pela USP, em visita à nossa casa, pouco antes de seu retorno a Moçambique, sua terra natal, contou-nos algumas histórias ouvidas ainda na infância. Quando perguntamos se ele já havia pensado em enfeixá-las num livro, respondeu modestamente que não, e que jamais imaginou que alguém se interessaria em lê-las, já que ainda é muito comum em seu país e entre o seu povo, Lomwe, o hábito de contar e difundir oralmente tais histórias. Agora poderemos conhecer algumas delas, que, em versões e variantes, correm nas águas de nossa tradição.

Assino, com muito orgulho, a apresentação deste livro que, ainda que voltado ao público infantojuvenil, deverá interessar aos estudiosos dos contos de tradição oral, haja vista suas histórias serem todas recolhidas diretamente da fonte da memória.
Xilogravura de Lucélia Borges para o conto
"A princesa que não falava com ninguém".

AS FÁBULAS DE MOÇAMBIQUE

Ithale (Ethale no singular) significa fábulas em Elomwe, língua falada pelo povo Lomwe, da região central de Moçambique1. Ela integra o grande ramo Banto, de comprovada contribuição à cultura brasileira. Contribuição ainda viva nas narrativas orais, principalmente aquelas protagonizadas pelo Coelho, animal esperto, inimigo da feroz Onça e de outros bichos de grande porte. Amigo ou compadre Coelho no Brasil, Tío Conejo na América espanhola, Brer Rabbit nas Bahamas e no sul dos Estados Unidos, ele enfrenta e derrota, quase sempre, os animais grandes, ferozes e estúpidos.

Artinésio Widnesse, professor e contador de histórias, costumava escutar de sua mãe, Suzana Nicasso, sempre à noite e em volta da fogueira, diversos contos tradicionais em que o pequeno e esperto Coelho sobrepujava a Hiena e o Leão, mas, às vezes, também se dava mal. Afinal, quando a esperteza é muita, costuma engolir o esperto...


Xilogravura de Lucélia Borges para o conto "O coelho esperto".
O Coelho protagoniza sete dos dez contos aqui reunidos, todos eles recolhidos da tradição oral Lomwe. O primeiro, O coelho esperto, é uma variante curiosa do conto O boneco de breu (ou Tar-baby), difundido em várias partes da África e também na Índia, país no qual, segundo o folclorista Aurélio M. Espinosa, a história teve origem. Aliás, convém lembrar que houve muitos indianos trabalhando na África do Sul no século 19 – incluindo o grande pacifista Mahatma Gandhi. Para não falar do vaivém dos portugueses pela costa da África a caminho da Índia nos séculos 15 e 16... No Brasil, o grosso das versões registradas traz o macaco como animal esperto e guloso, que cai na armadilha do boneco de cera criado por uma velha.

Registrei A onça, o coelho e o jacaré no livro Contos e fábulas do Brasil (2011). Uma história interessantíssima é A princesa que não falava com ninguém, que aparece em Portugal, no Brasil e em praticamente toda a Europa, mas sempre com personagens humanos. Na versão registrada por Artinésio, além de encontrar os tradicionais adversários, Girafa, Javali, Búfalo e Hiena, acompanhamos as traquinagens do Coelho, cujo desafio é fazer falar uma princesa, filha do Leão, que jamais havia pronunciado uma única palavra em toda sua vida.
Lemos também, nesta bela coletânea, uma versão local da fábula do grego Esopo, A raposa e a cegonha, protagonizada por dois animais finórios: O Macaco e o Cágado. Assim como no clássico grego, de 600 antes de Cristo (a.C.), um animal convida o outro para comer em sua casa, mas cria tal embaraço que o visitante retorna para casa de barriga vazia. A vingança, claro, não tardará.
Outro conto de natureza exemplar é O Macaco avarento, que, em seu motivo principal – a cobrança absolutamente injusta e desproporcional de uma dívida –, ocorre na tradição oral de vários países, envolvendo também protagonistas humanos e com pano de fundo religioso. O Macaco, que rivaliza com o Coelho em matéria de esperteza, é o herói de nossa última história, um belo conto de esperteza em que o Tubarão é o grande antagonista. Uma versão antiquíssima, El Mono y la Tortuga (O macaco e a tartaruga), figura no Calila e Dimna, coleção de fábulas exemplares da Índia conhecidas no Ocidente a partir de uma tradução persa no século VI depois de Cristo (d.C.), ampliada em versões árabes e traduzida para o castelhano em 1251.

Ithale são, portanto, contos de coloração local, mas que dialogam com a tradição clássica do Oriente e do Ocidente. Afinal, Moçambique, por muito tempo uma possessão portuguesa, soube preservar suas mais caras tradições, adaptando as contribuições estrangeiras, sem perder a essência identitária dos muitos povos que formam o país. É uma parte dessa rica tradição, que nos parece tão familiar, que Artinésio Widnesse nos apresenta neste pequeno relicário.
Marco Haurélio
Autor de O cavaleiro de prata e
Breve história da literatura de cordel




ARTINÉSIO WIDNESSE SAGUATE nasceu em 1982 na Província central da Zambézia, Distrito de Namarrói, em Moçambique. Parte de sua infância foi vivida em meio à guerra civil que fustigava seu país. Cresceu ouvindo histórias de animais contadas por sua mãe e pelos seus irmãos mais velhos, mas também pelo seu avô paterno. Em 1988, refugiou-se, junto com sua família, no Malawi, país vizinho ao seu. Aos 8 anos de idade, teve o primeiro contato com o alfabeto em uma das escolas primárias locais. Os textos lidos na escola enriqueceram ainda mais a educação tradicional por ele recebida de sua família. Em 1993, retornou a Moçambique, onde continuou seus estudos. Apaixonou-se pela linguística e, também, pela literatura, tendo se formado em Ensino de Português, em 2008, na Faculdade de Ciências da Linguagem, Comunicação e Artes da Universidade Pedagógica de Moçambique (UP), Delegação de Nampula.

Na faculdade, começou uma afinidade com o Brasil, por meio de leitura de textos de autores brasileiros, como José de Alencar e Machado de Assis. Essa afinidade se consolidou em 2010, quando veio ao país cursar o mestrado. Em 2012, voltou a Moçambique, onde atuou como professor universitário. Em meados de 2013, foi agraciado com mais uma bolsa de estudos e optou, de novo, pelo Brasil. Em 2017, tornou-se doutor em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP).

Sua tese de doutorado abordou o ensino bilíngue no curso fundamental em Moçambique. E foi na esteira desse espírito de concepção de material para o ensino que nasceu a ideia de registrar a cultura tradicional de seu povo. O livro que ora se publica no Brasil constitui sua estreia e faz parte de um projeto amplo de coleta e publicação de histórias de diferentes áreas de Moçambique, sobretudo as regiões rurais, com destino ao público infantojuvenil. As histórias aqui apresentadas são transcrições de histórias contadas por sua mãe e parentes.


FICHA TÉCNICA:
Título: ITHALE fábulas de Moçambique
Autor: Artinésio Widnesse
Ilustrações: Lucélia Borges
ISBN: 978-85-293-0213-3
Formato fechado: 16 x 23 cms
Nº de páginas: 48
Profundidade: 0,4 cm
Peso: 0,112 kg
Assunto principal: Contos
Assunto secundário: Literatura infantojuvenil moçambicana
Preço de capa: R$ 46,00

Nenhum comentário: