quarta-feira, 13 de outubro de 2021

LEONOR

"Leonor e Guilherme sobre o dorso do cavalo"
de Johann David Schubert


Ralada de ruins sonhos

Já desperta está Leonor,

E 'inda agora os céus d'oriente

Da manhã tingiu o alvor.

 

«Guilherme, és morto?―ela exclama―

Ou traíste a pobre amante?

Se vives, porque retardas

De te eu ver feliz instante?»

 

Nas tropas de Frederico 

Tempo havia que partira 

Para a batalha de Praga,

E cartas dele quem vira?

 

Mas a imperatriz e o rei

De guerras, enfim, cansados, 

Depondo os ânimos feros,

De paz faziam tratados.

 

Já aos seus lares tornavam 

Ambas as hostes folgando. 

Cingem frentes ramos verdes; 

Vem atabales rufando.

 

E por montes e por vales 

Velhos e moços chegavam, 

Dando brados de alegria,

A encontrar os que voltavam.

 

―«Boa vinda! Adeus!―diziam

As filhas, noivas, e esposas.

E Leonor? Nenhum dos vindos

Lhe faz carícias saudosas.

 

Por Guilherme ela pergunta;

Por qual estrada viria.

Vão trabalho; vãs perguntas: 

Novas dele quem sabia?

 

Não o vê. Passaram todos...

Em furioso devaneio,

Ei-la arranca as negras tranças;

Fere cru o lindo seio.



Sua mãe, correndo a ela:

―«Valha-me Deus!―lhe bradou.

― Minha filha, pois que é isso?!»―

E entre os braços a apertou.

 

―«Minha mãe, perdeu-se tudo!

O mundo, tudo perdi:

De nada Deus se condói...

Oh dor, oh pobre de mi!»―

 

―«Ai! Jesus venha à minha alma!

Filha, um padre-nosso reza. 

Deus é pai: sempre nos ouve:

Nunca a humana dor despreza.»―

 

―«Minha mãe, inútil crença!

Que bens me tem feito Deus? 

Padre-nossos!.. padre-nossos!..

Que importam rezas aos céus?»―

 

―«Ai! Jesus venha á minha alma! 

Pois não é quem reza ouvido? 

Busca da igreja o consolo

Verás teu pesar vencido.»―

 

―«Mãe, oh mãe, esta amargura

Nenhum sacramento adoça: 

Não sei nenhum sacramento,

Que aos mortos dar vida possa.»―

 

―«Filha, quem sabe se, ingrato,

Ele ás promessas faltou;

E lá na remota Hungria 

Novo amor o cativou?

 

Se, mudável, te abandona, 

Do crime o prêmio terá:

Do último trance na angústia

O remorso o punirá.»―

 

―«Morreu-me, oh mãe, a esperança. 

Perdido... tudo é perdido!

Morrer, também, só me resta. 

Nunca eu houvera nascido!

 

Foge, oh sol resplandecente!

Manda a noite e os seus terrores... 

Deus, oh Deus, que nunca escutas 

O gemer de humanas dores.»―



―«Meu Senhor! A desditosa

Não pensa o que a língua exprime. 

Não julgues a filha tua:

Nem te lembres do seu crime.

 

Vãs paixões esquece, oh filha: 

Cogita no gozo eterno,

No sangue que te remiu,

E nos tormentos do inferno.»―

 

–«O que é gozo eterno, oh mãe, 

E o inferno em que consiste?

Com Guilherme há gozo eterno, 

Sem Guilherme o inferno existe.

 

Sem ele, que a luz fugindo,

Se troque em noturno horror;

Sem ele, no céu, na terra

Só conheço acerba dor!»–

 

Assim no sangue e na mente 

Fúria insana lhe fervia: 

Cruel chamando ao Senhor,

Mil blasfêmias repetia.

 

Desde o sol brilhar no oriente 

Até que o céu se estrelava, 

As mãos, louca, retorcia,

O brando seio pisava.

 

Porém ouçamos!.. A terra 

Pisa um cavalo lá fora!..

E pelos degraus da escada 

Tinem sons d'espada e espora...

 

Ouçamos! Batem na argola 

Pancadas que mal feriram... 

E através das portas, claro, 

Estas palavras se ouviram:

 

―«Oh lá, querida, abre a porta.

Dormes? Estás acordada? 

Folgas em riso? Pranteias?

De mim és 'inda lembrada?»―

 

―«Guilherme, tu?! Na alta noite?

Tenho velado e gemido.

Quanto padeci!.. Mas, d'onde

Até 'qui tens tu corrido?!»―

 

―«Nós montamos à meia-noite Só. 

Vim tarde, mas ligeiro,

Desde a Boêmia, e comigo

Levar-te-ei, por derradeiro.»―

 

―«Oh meu querido Guilherme, 

Vem depressa: aqui te abriga 

Entre meus braços; que o vento 

Do bosque as crinas fustiga.»―

 

―«Rugir o deixa nos matos.

Sibila? Sibile embora!

Não paro... que o meu ginete 

Escarva o chão... tine a espora...

 

Nosso leito nupcial

Dista cem milhas d'aqui.

Sobraça as roupas... vem... salta

No murzelo, atrás de mi.»―

 

«Além cem milhas, me queres 

Hoje ao tálamo guiar?

Ouve... o relógio ainda soa:

Doze vezes fere o ar.»―

 

―«Olha em roda! A lua é clara: 

Nós e os mortos bem corremos. 

Aposto eu que n'um instante 

Ao leito nupcial iremos?»―

 

―«Mas dize-me, onde é que habitas?

Como é o leito do noivado?―

«Longe, quedo, fresco, breve:

De oito tábuas é formado.»―

 

―«Para dous?―«Para nós ambos.

Sobraça as roupas: vem cá.

 Os convidados esperam:

O quarto patente está.»―

 

Sobraçada a roupa, a bela

Para o ginete saltou,

E ao seu leal cavaleiro

Co' as alvas mãos se enlaçou.

 

Ei-los vão! Soa a corrida.

Ei-los vão, à fula-fula!

Ginete e guerreiro arquejam:

A faísca, a pedra pula.

 

Ui, como, à direita, à esquerda, 

Ante seus olhos se escoam

Prado e selva, e do galope

Sob a ponte os sons ecoam!

 

―«Tremes, cara? A lua é pura. 

Depressa o morto andar usa.

Tens medo de mortos?―«Não.

 Mas deles falar se escusa.»―

 

―«Que sons e cantos são estes?

O corvo ali remoinha!

Sons de sino? Hinos de morte?

É morto que se avizinha!»―

 

Era de feito um saimento, 

Que andas e esquife levava: 

Aos silvos de cobra em pego

Seu canto se assemelhava.

 

―«Um enterro à meia-noite, 

Com salmos e com lamento,

 E eu a minha noiva levo

Ao sarau do casamento?

 

Vinde, sacristão e o coro,

O epitalâmio entoai-nos;

Vinde, abade, e antes que entremos

No leito, a bênção lançai-nos.»―

 

Cala o som e o canto: a tumba 

Some-se: finda o clamor

A seu mando; e o tropel voa

Na pista do corredor.

 

Sempre mais alto a corrida 

Soa. Vão á fula-fula.

Ginete e guerreiro arquejam:

A faísca, a pedra pula.

 

Como à destra e esquerda fogem 

Montes, bosques, matagais!

Como á destra e esquerda fogem 

Cidades, vilas, casais!

 

―«Tremes, cara? A lua é pura. 

Depressa o morto usa andar. 

Temes os mortos, querida?»―

―«Ai, deixa-os lá repousar!»―


―«Olha! Ao redor de uma forca 

Dançar em tropel não vês

Aéreos corpos, que alvejam

Da luz da lua através?

 

Oh lé, birbantes, aqui!

Birbantes, acompanhai-me! 

Vinde. A dança do noivado

Junto do leito dançai-me.»―

 

E os vultos vêm após logo, 

Ruído imenso fazendo,

Como o furacão nas folhas 

Secas do vergel rangendo.

 

E ressoando a corrida

Ei-los vão, á fula-fula.

Ginete e guerreiro arquejam:

 A faísca, a pedra pula.

 

Para trás fugir parece 

Quanto o luar alumia;

Para trás suas estrelas

Sumir o céu parecia.

 

―«Tremes, cara? A lua é pura. 

Depressa o morto andar usa. 

Temes os mortos, querida?―

―«Ai, deles falar se escusa!»―

 

―«Murzelo, o galo ouvir creio! 

Breve a areia há-de correr... 

Murzelo, avia-te, voa;

Que sinto o ar do amanhecer!

 

Nossa jornada está finda:

Ao leito nupcial chegamos: 

Ligeiro os mortos caminham:

A meta final tocamos.»―

 

D'uma porta às grades férreas 

À rédea solta chegaram,

E de frágil vara ao toque 

Ferrolho e chave saltaram.

 

Fugiram piando as aves:

A corrida, enfim, parara

Sobre campas. Os moimentos

Alvejam; que a noite é clara.

 

Peça após peça, ao guerreiro 

Cai a armadura lustrosa

Em negro pó impalpável,

Qual de isca fuliginosa.

 

Sua cabeça era um crânio 

Branco-pálido, escarnado:

Nas mãos tem foice e ampulheta, 

Triste adorno de finado.

 

Alça-se e arqueja o ginete: 

Ígneas faíscas lançou,

E debaixo de seus pés

Abriu-se a terra, e o tragou.

 

Dos covais surgem fantasmas:  

Feio urrar os ares corta:

Bate incerto o coração

Da donzela semimorta.

 

Ao redor danças de espectros 

Em remoinho passavam: 

Canto de medonhas vozes

Era o canto que cantavam:

 

«Afliges-te? Oh, tem paciência!

Não fosses com Deus audaz.

Teu corpo pertence á terra:

À tua alma o céu dê paz.»―

 

Gottfried August Bürger

Traduzido por Alexandre Herculano

 


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