sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Literatura de Cordel: texto básico para oficinas


Brevíssimo histórico
Desde o século XIX, a literatura de cordel nordestina vem sendo usada como fonte de lazer, educação e cultura. Foi o primeiro jornal do homem do campo e sua cartilha de alfabetização. Vários nordestinos aprenderam a ler por meio dos folhetos de cordel. Sob a luz do lampião a querosene, as pessoas se reuniam em torno para a leitura dos grandes clássicos do gênero, além das novidades, recém-adquiridas nas feiras populares.

Os variados gêneros da poesia popular eram debulhados pela genialidade dos leitores (ou ledores) e dos cantadores de folhetos, alguns profissionais. O conteúdo das histórias, sua rima cadenciada, sua poesia, ao mesmo tempo simples e elevada, eram um convite à alfabetização, ao conhecimento dos rudimentos da escrita. Milhares de pessoas tiveram no “livrinho de versos” seu primeiro e, quase sempre, único professor.

No Nordeste, além do papel social, aproximando as pessoas, o Cordel sempre teve uma finalidade lúdica, daí a popularidade de heróis traquinos como Pedro Malazarte, Cancão de Fogo e João Grilo. As histórias de encantamento representavam uma fuga temporária da realidade quotidiana e um mergulho num mundo onde tudo era possível. Os cangaceiros encarnavam um ideal de justiça numa época em que o coronel se postava como um senhor absoluto. Com o fim do cangaço, surgiram heróis da ficção como Rufino, o Rei do BarulhoJosé de Souza Leão e Antônio Cobra-Choca, sempre em papéis de vingadores das injustiças de que eram vítimas os sertanejos. Lampião, Padre Cícero, Getúlio Vargas e Frei Damião foram, e continuam sendo biografados pelos poetas populares, intérpretes do inconsciente coletivo.

Leandro Gomes de Barros (1865-19198) é, ainda hoje, o mais lido de todos os poetas do gênero e o principal responsável por sua difusão. O Romance do pavão misterioso, de José Camelo de Melo Resende, é o best-seller do Cordel, com milhões de exemplares vendidos em mais de 70 anos de edições e reimpressões ininterruptas. Hoje, são muitos escrevendo e publicando, a exemplo de Klévisson Viana, Rouxinol do Rinaré, Josenir Lacerda, Manoel Monteiro, Arlene Holanda, Moreira de Acopiara, Dalinha Catunda, Arievaldo Viana, Salete Maria, Nezite Alencar, João Gomes de Sá, Varneci Nascimento, Evaristo Geraldo, Bastinha Job, Janduhy Dantas, José Honório e Antônio Barreto.


Muitas são as formas de se ilustrar um folheto de cordel, mas a mais característica é a xilogravura. São famosos os poetas xilógrafos José Costa Leite, Dila, Jota Barros, J. Borges, Stênio Diniz. Atualmente, uma outra geração se destaca com nomes como: Marcelo Soares, Erivaldo, Severino Borges e Nireuda Longobardi.

Estrutura do cordel  

A estrofe básica do cordel é a sextilha, com predominância para os versos de sete sílabas poéticas. Como exemplo, tomemos de empréstimo este trecho de Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo, de minha autoria.

João Grilo foi um menino (X)
De grande sagacidade,      (A)
Aprimorou a esperteza      (X)
Devido à necessidade –     (A)
Enganava a todo mundo    (X)
Com muita facilidade.       (A)

1         2    3   4    5    6   7
João/ Gri/lo /foi/ um/ me/nino

O X A X A X A refere-se ao esquema de rimas utilizado. Com X são indicados os versos que não rimam e, com A, os versos que rimam entre si. O trecho selecionado tem sete sílabas poéticas. Conta-se até a última sílaba tônica, no caso o “ni”. A átona “no”, que é pronunciada sem muita ênfase, não entra no cômputo final. Esse processo é chamado de escansão.  No quarto verso (Devido à necessidade), na parte destacada, há a fusão de duas vogais em palavras separadas, o que gera somente uma sílaba poética. É o que chamamos de elisão.

Como exemplo de setilha, pegaremos a primeira estrofe do clássico A Chegada de Lampião no Inferno, de José Pacheco da Rocha:

Um cabra de Lampião           (X)
Por nome  Pilão Deitado        (A)
Que morreu numa trincheira  (X)
Num certo tempo passado      (A)
Agora pelo sertão                    (B)
Anda correndo visão               (B)
Fazendo mal-assombrado.      (A)

Os versos que rimam entre si são o 2º, o 4º,  e o 7º (A), além do 5º e do 6º (B). O 1º e o 3º, representados por X, não rimam entre si.

Agora, um exemplo em martelo agalopado (estrofe de dez versos de dez sílabas poéticas). Os versos são marcados por acentuação tônica nas terceira, seta e décima sílabas. A estrofe foi retirada do folheto Galopando o Cavalo Pensamento, de minha autoria:

A Senhora dos Túmulos observa
O vaivém da tacanha mocidade,
Que despreza a virtude e a verdade
E dos vícios se mostra fiel serva,
Porém nada no mundo se conserva:
Sendo a vida infindo movimento,
É a Morte um novo nascimento
A inveja é o túmulo dos vivos –
O herói repudia esses cativos,
Galopando o Cavalo Pensamento.

Lembramos que esta modalidade é mais comum nas cantorias de poetas repentistas e são poucos os cordelistas que exploram esta seara.

O mesmo se diga do galope à beira-mar, composto por estrofes de dez versos de onze sílabas poéticas, com acentuação nas segunda, quinta, oitava e décima primeira sílabas poéticas. O trecho abaixo, que homenageia o projeto TAMAR, integrou o cordel Brasil Real em Poesia, organizado pelo professor mineiro José Mauro.

Nos mares revoltos da ignorância
Espécies inteiras são ameaçadas;
Somente nos livros serão relembradas,
Varridas do mapa pela intolerância,
Ausente dos olhos de quem, na infância,
Quer a natureza e a Deus celebrar,
Ver a tartaruga marinha chegar
Ao grande oceano revolto, sem fim,
Para a liberdade alcançar assim
Vencendo a batalha na beira do mar.

Nenhuma oficina pode abarcar a pretensão de formar autores. Pode, no máximo, servir para despertar ou impulsionar talentos. A formação de leitores, esta sim, deve ser o objetivo do poeta-ministrante. E a leitura de bons autores do gênero é fundamental.

A lista abaixo não se pretende completa, mas traz algumas obras recomendáveis para aqueles que já conhecem e para os que pretendem adentrar o universo multifacetado da literatura de cordel. Dei preferência para títulos que são publicados, para facilitar o trabalho daqueles que lerão, pela primeira vez, um folheto de cordel ou ainda não têm muita familiaridade com o gênero.

Folhetos e romances sugeridos

O Cachorro dos Mortos, de Leandro Gomes de Barros

Vida e Testamento de Cancão de Fogo, de Leandro Gomes de Barros

História de João da Cruz, de Leandro Gomes de Barros

Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, de Leandro Gomes de Barros

História de Zezinho e Mariquinha, de Silvino Pirauá de Lima

Antônio Silvino – Vida, Crimes e Julgamento, de Francisco das Chagas Batista

História de Juvenal e o Dragão, de Leandro Gomes de Barros

História do Valente Vilela, de João Martins de Athayde

- O valor da honestidade, de Altino Alagoano (Maria das Neves Batista Pimentel 

O Pavão Misterioso, de José Camelo de Melo Resende

História de Pedrinho e Julinha, de José camelo de Melo Resende

 - A Sorte do Amor, de Manoel D’Almeida Filho

- Prece de uma solteirona, de Bastinha job

O Príncipe do Barro Branco e a Princesa do Vai-Não-Torna, de Severino Milanês da Silva

O Príncipe João sem Medo e a Princesa da Ilha dos Diamantes, de Francisco Sales de Arêda

O Enjeitado de Orion, de Delarme Monteiro da Silva

João Soldado, de Antônio Teodoro dos Santos

- Histórias de um mentiroso, de Nezite Alencar 

O Grande Debate de Lampião com São Pedro, de José Pacheco da Rocha

História de Vicente e Josina, de José Pacheco da Rocha

O Assassino da Honra ou a Louca do Jardim, de Caetano Cosme da Silva

O Verdadeiro Romance do Herói João de Calais, de Severino Borges Silva

História do valente Sertanejo Zé Garcia, de João Melquíades Ferreira da Silva

Aprígio Coitinho e Neusa, de José Camelo de Melo Resende

Amor e Martírio de uma Escrava, de João Firmino Cabral

A Lagoa Misteriosa e o Cavalo Encantado, de Eneias Tavares dos Santos

Entre o Amor e a Espada, de José Camelo de Melo Resende

História do Valente João Acaba-Mundo e a Serpente Negra, de Minelvino Francisco Silva

História do Boi Leitão e o Vaqueiro que Não Mentia, de Francisco Firmino de Paula

Padre Cícero, o Santo do Juazeiro, de Manoel D’Almeida Filho

A Vitória do Príncipe Roldão no Reino do Pensamento, de Severino Gonçalves de Oliveira

- Dimas e Madalena nos Labirintos da Sorte, de Manoel Pereira Sobrinho

- As Donzelas Teodoras, de Josenir Lacerda

João Sem Destino no Reino dos Enforcados, de Antônio Alves da Silva

João Grilo, um Presepeiro no Palácio, de Pedro Monteiro

O Batizado do Gato, de Arievaldo Viana

- Os animais têm razão, de Antonio Francisco

João da Viola e a Princesa Interesseira, de Klévisson Viana

As Três Folhas da Serpente, de Marco Haurélio

O Massacre de Canudos, de Varneci Nascimento

Os Últimos Dias de Pompeia, de Evaristo Geraldo

Uma Tragédia de Amor ou a Louca dos Caminhos, de Manoel Monteiro

A Vitória de Renato e o Amor de Mariana, de José João dos Santos (Mestre Azulão)

O Guarda-Floresta e o Capitão de Ladrões, de Rouxinol do Rinaré

Bibliografia sugerida

ALMEIDA, Átila, ALVES SOBRINHO, José. Dicionário bio-biliográfico de repentistas e poetas de bancada. João Pessoa: Editora universitária, 1978.

ALVES SOBRINHO, José. Cantadores, repentistas e poetas populares. Campina Grande, PB: Bagagem, 2003.
AZEVEDO, Adriana Cordeiro. Cordel, Lampião e cinema na terra do sol. Rio de Janeiro: Ferreira Estúdio, 2004.

BATISTA, Sebastião Nunes Batista. Antologia da Literatura de Cordel. Natal: Fundação José Augusto, 1977.

CAMPOS, Renato Carneiro. Ideologia dos poetas populares do Nordeste. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais; Rio de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro; FUNARTE, 1977.

CASCUDO, Luís da Câmara. Cinco livros do povo (edição fac-similar). João Pessoa: Editora Universitária, 1979.

_____________. Mouros, franceses e judeus: três presenças no Brasil. São Paulo: Global, 2001.

_____________. Vaqueiros e cantadores. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: editora da universidade de São Paulo, 1984.

DEBS, Sylvie. Cinema e Cordel: idas e vindas entre a imagem e a letra. In: Cultura Crítica, n. 6, Revista da Associação de Professores da Puc-SP, p. 47, segundo semestre de 2008.

FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória: conto e poesia popular. Salvador, BA: Fundação Casa de Jorge Amado, 1991.

LESSA, Orígenes. Getúlio Vargas na Literatura de Cordel. Rio de Janeiro: Documentário, 1973.

LESSA, Orígenes, SILVA, Vera Lúcia Luna e. O cordel e os desmantelos do mundo. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983.

LIMA, Egídio Oliveira. Folhetos de cordel. João Pessoa: Editora Universitária, 1978.

LITERATURA POPULAR EM VERSO: ESTUDOS. Manoel Diegues Júnior et al. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da universidade de São Paulo, 1986.

LONDRES, Maria José F. Cordel: do encantamento às histórias de luta. São Paulo: Duas Cidades, 1983.

LOPES, José Ribamar (org.). Literatura de Cordel; antologia. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 2004.

LUYTEN, Joseph Maria. A Literatura de Cordel em São Paulo: saudosismo e agressividade. São Paulo: Edições Loyola, 1981.

_____________. O que é literatura popular. São Paulo: Brasiliense, 1983.

_____________. A notícia na Literatura de Cordel. São Paulo: Estação Liberdade, 1992.

MAXADO, Franklin. O que é Literatura de Cordel? Rio de Janeiro: Codecri, 1980.

_____________. Cordel, xilogravura e ilustração. Rio de Janeiro: Codecri, 1982.

MEYER, Marlyse (seleção de textos e estudo crítico). Autores de cordel. São Paulo: Abril Educação, 1980.

MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1962.

_____________. Cantadores: poesia e linguagem do sertão cearense. Rio de janeiro: Livraria Castilho, 1921.

PELOSO, Silvano. O canto e a memória: história e utopia no imaginário popular brasileiro. Trad.: Sonia Netto Salomão. São Paulo: Ática, 1996.

PEREGRINO, Umberto. Literatura de Cordel em discussão. Rio de Janeiro: Presença, 1984.

PROENÇA, Manoel Cavalcante. Literatura Popular em verso: antologia. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1986.

SALLES, Vicente. Repente e cordel: literatura popular em versos na Amazônia. Rio de Janeiro: FUNARTE, Instituto Nacional do Livro, 1985.

SLATER, Candace. A vida no barbante: a Literatura de Cordel no Brasil. Trad.: Octávio Alves Filho.  Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1984.

SOUSA, Liêdo Maranhão de. Classificação popular da Literatura de Cordel.  Petrópolis: Vozes, 1976.

SOUZA, Pe. Manoel Matusalém. A Igreja e o povo na Literatura de Cordel. São Paulo: Paulinas, 1984.

TAVARES, Bráulio. Contando histórias em versos: poesia e romanceiro popular no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 2005.

VIANA, Arievaldo (org.). Acorda cordel na sala de aula. Fortaleza: Tupynanquim; Mossoró: Queima-Bucha, 2006.

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